13.09

Geddel Vieira escondia R$ 51 milhões, enquanto o sonho de Sandra era apenas saber assinar o nome.

Luce Pereira (texto)
Arte DP (imagem)

A imagem daquelas malas e caixas com mais de R$ 51 milhões, recém-descobertas em um apartamento usado como bunker pelo ex-ministro Geddel Vieira Lima, me vieram à cabeça com força depois de ler uma matéria da BBC Brasil, texto da jornalista Renata Moura, do Rio Grande do Norte. Ao se deparar com dois Brasis tão bizarros, que, naturalmente, são o resultado do desprezo do poder público pelo coletivo, a sensação é de desnorteamento absoluto, embora a história da catadora de lixo Sandra Maria de Andrade, 42 anos, leve a uma crença tão simples quanto mágica: a de que a força das pessoas acaba iluminando o campo dos pequenos sonhos e muitas delas, por alguma força estranha, acabam chegando a eles. Considerando que o ambiente, a idade, o excesso de trabalho duro e mal remunerado, o cansaço e a falta de perspectiva de futuro já criam o cenário perfeito para a vida não passar de um fardo, Sandra teria tudo para desistir do mais básico dos direitos do cidadão – o de saber ler e escrever. Continuaria a fazer parte daqueles 12,9 milhões de pessoas (8,3% da população com mais de 15 anos) mantidas longe da possibilidade de saber assinar o próprio nome. Mas não foi assim: não se deixou esmagar pelo peso da própria história e encontrou no filho menor o professor que lhe havia sido negado desde a mais tenra idade.
A trajetória, é óbvio, foi sempre marcada pelos espinhos reservados ao Brasil dos sem-oportunidade. Abandonada pela mãe aos três anos, depois de morar com a avó, se viu entregue a um casal sem simpatia nenhuma pela ideia de vê-la frequentar a escola. Só lhe caberia trabalhar feito burro de carga na lavoura, em casas de farinha ou de família, fazendo faxina. Mas o sonho de ter alguma intimidade com as letras, a ponto de conseguir escrever o nome com consciência sobre o que a junção delas significava, dormia em um cantinho da esperança. Era do que mais sentia “inveja” quando encontrava alguém com livros e cadernos embaixo do braço, indo para a aula. Era para lá que desejava seguir, também, mas, sempre impedida, chorava. O mesmo choro sentido que surgiu ao fugir para encontrar a mãe, aos 12 anos, e ser rejeitada, enfrentando ainda a ameaça de sofrer abuso sexual por parte do padrasto. Perambulando pela casa de um e de outro conhecido, acabou na rua, catando lixo para sobreviver.
Quando se vive uma vida errante, marcada pela dor, num país que cultiva discrepâncias e injustiças com a maior naturalidade, a oferta de um prato de comida pode significar esperança de sobrevivência física e emocional. Mas o homem a quem se uniu aos 13 anos, na ilusão de pela primeira vez ser protegida, foi tão violento que era também golpeada com faca e teve até cabelos arrancados com os dentes, na frente dos três filhos. Hora havia em que nem se achava viva, de tantos ferimentos – e decidiu fugir com as crianças. Depois de tudo, a vergonha ao ter que assinar a carteira de identidade colocando a digital. Tanta que o filho menor, Damião, nascido de um segundo casamento e ali com pouco menos de quatro anos, jurou que aprenderia a ler e a ensinaria. Novamente sozinha, sobrava-lhe a mais cruel das contabilidades: dos sete rebentos, apenas três sobreviveram à vida severina.
E o pequeno Damião esmerou-se tanto. Entre as aulas de reforço e o cumprimento das tarefas, pegava livrinhos na escola, lia tudo com a mãe, ensinava letra por letra, espantava o mistério que algumas tinham para ela. Em 2016, leram juntos 106 daqueles títulos, na casinha do Jardim Progresso (periferia de Natal), e então Sandra tocou o sonho. Quando já se achava íntima da escrita, o que mais a animou foi tirar outra carteira de identidade assinada de próprio punho. Damião já vai para o sexto ano, porém a leitura já o leva a qualquer lugar. Quanto a Sandra, descobriu-se dona do próprio destino. Quanto a Geddel e aos outros tantos políticos que assaltam os cofres públicos, serão apenas manchas nas páginas de uma história que o Brasil (neste tempo, apenas um) fará questão de esquecer.