05.10

O Brasil em dois atos. O primeiro é de agora, 2017; o outro, de 1974. Ambos no Recife.

Vandeck Santiago (texto)
Odd Andersen/AFP (foto)

No ano do centenário da Revolução Russa de 1917, o DCE e a Associação dos Docentes da Universidade Católica de Pernambuco promovem no próximo dia 19 ato sobre o acontecimento, que faz parte da história mundial. Haverá uma aula pública e um show poético-musical no pátio da Universidade. No Brasil das três últimas décadas (ou seja, no pós-redemocratização, de 1985), esse tipo de evento passaria sem maiores repercussões ou conflitos, como algo corriqueiro num ambiente universitário. Mas não no Brasil de 2017.
O ato gerou protestos do MBL (Movimento Brasil Livre), seção Pernambuco, que viu contradição em uma universidade católica sediar ato dessa ordem, e “ameaçou” denunciar o caso ao papa… Vejam o que disse, em sua página numa rede social:
“Será que já esqueceram do genocídio contra os católicos na URSS e países do Leste europeu? Como uma instituição católica pode se submeter a isso?
Esse evento sendo celebrado na Unicap é como se um filho fosse para o aniversário do assassino de seus país!
Atualização: Estamos estudando uma nota de repúdio ao arcebispo, com ameaça de envio de denúncia formal a Roma”.
Em outros tempos, toda essa reação seria vista de forma jocosa. Não no Brasil de 2017, porém. Tanto que a Unicap emitiu nota oficial, reagindo contra o que considerou um ataque à “liberdade institucional” e posicionando-se frontalmente contrária “a ficar refém de movimentos”.
Diz trecho da nota:
“A Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) comunica aos seus docentes, funcionários e alunos, bem como às pessoas de boa vontade e lucidez, sua perplexidade diante de mais uma campanha de difamação nas redes sociais, distorcendo fatos, sem conhecimento do papel de uma universidade e das circunstâncias em que os debates acontecem no campus, dentro da linha de diálogo e busca incessante da verdade.
Trata-se, desta vez, de um evento organizado pelo DCE e pela ADUCAPE, instituições autônomas de representação, respectivamente, estudantil e docente, que solicitaram espaço para realização de atividades, das quais são os responsáveis diretos.”
Lembra ainda, em novo trecho, que esse tipo de ataque tem ocorrido em outras instituições universitárias:
“Sabemos que isso vem acontecendo em outras universidades, inclusive outras instituições jesuítas, no intuito de fazer pressão, com aparelhamento nas redes sociais, ameaças estranhas e linguagem pouco ética, querendo fomentar a divisão de nossa sociedade, já tão fragilizada, e também da igreja; atitudes que não somente se distanciam da verdade, mas, sobretudo, revelam o caráter de tais grupos.”
O DCE e a Associação dos Docentes (Aducape) também divulgaram nota oficial conjunta, afirmando que a ação do MBL é “tentativa de censura e intimidação” e condenando o fato de que, depois de “censuras e ataques às exposições artísticas e manifestações culturais de museus”, a ofensiva está agora voltando-se contra “os debates e manifestações públicas das universidades”.
Façamos agora uma viagem no tempo. Estamos em 1974, em plena ditadura. Marcus Cunha, então vereador do Recife pelo MDB, idealizou a realização de um evento chamando 1º Ciclo de Conferências sobre Problemas Brasileiros. Na lista de palestrantes constavam, entre outros, um jovem sociólogo, Fernando Henrique Cardoso. Naquela época, os campus eram área de segurança nacional, e para convidar representantes de diretórios era preciso solicitar permissão ao reitor. Marcus Cunha fez isso, por meio de ofício, a um determinado reitor de uma determinada universidade (não era a Católica). Ao ler o comunicado, o reitor escreveu no papel: “Que atrevimento: fazer agitação na Universidade!” . Em seguida, indeferiu o pedido e enviou cópia ao setor militar encarregado da segurança na área. Marcus Cunha foi preso por policiais armados com metralhadora, encapuzado, posto dentro de uma viatura e levado para a prisão. No interrogatório a que foi submetido, lhe perguntaram: Sabe que Fernando Henrique é comunista? Quais os professores e colegas de Faculdade que o senhor conhece como esquerdista?
A imprensa local, sob censura, não pôde denunciar a prisão. Quem o fez foi o jornalista Carlos Garcia, no Estado de S. Paulo — por causa disso, foi preso e barbaramente torturado. Sua casa, invadida. Cunha e Garcia acabaram sendo libertados, depois de uma ampla mobilização de entidades e parlamentares (liderados por Jarbas Vasconcelos).
2017 não é, graças a Deus, 1974. No entanto, os fatos que estão acontecendo agora — aparentemente ridículos, mas perigosos — trazem o gosto ruim de um passado que nenhum democrata quer de volta. É preciso enfrentar essa onda com firmeza — como o fez a Unicap, agora, e o jornalista Carlos Garcia, em 1974.