23.11

Técnica de enfermagem largou emprego e passou a fazer contação de histórias para crianças carentes.

Silvia Bessa (texto)
Nando Chiappetta/DP (foto)

Como se vê em cena de cinema. O marginal entra no carro, rende a família e faz todos reféns. Neste enredo real, uma aflição que durou oito longas e opressivas horas. A então técnica de enfermagem Beth Queiroz estava no seu dia de folga como plantonista de uma UTI infantil. Com o marido, José Domingos Júnior, e a filha Beatriz, que tinha oito anos, esperavam no carro estacionado defronte a uma loja no centro comercial de Paulista por um parente a quem dariam carona. Um bandido sentou-se no banco de trás do automóvel ao lado de Beatriz. “Ninguém sabe como, porque você não espera nem prevê”. Mandou que o pai da família dirigisse e guiava a rota. Do centro de Paulista até a mata próxima ao Clube do Picapau, Br 101 Norte, todo tipo de terror psicológico. Como resgate, exigiram R$ 10 mil em espécie a Júnior. O pai teria de ir buscar o dinheiro, deixando mulher e filha para trás. Sem alternativa, foi.
“Fiquei deitada e abraçada com minha filha no chão da mata das 18h às 2h da madrugada. Dois homens nos vigiavam. Eu escutava vozes de longe, grilos e, no silêncio, todo barulho de bicho do mato”, narrou ela enquanto tentava engolir o choro. O marido foi buscar fundos, avisou à Polícia e o Grupo de Operações Especiais entrou no caso, uma vez que havia o que chamam de “retenção de vida”. Júnior chegou com o dinheiro arrecadado com parentes e o arrumou num envelope branco. Na hora do pagamento, Beth foi separada de Beatriz. A garotinha ficou a sós com os bandidos. “Esteve protegida por todos os arcanjos porque em nenhum momento surtou”, conta Beth. Faz quase três anos daquela trágica noite de 19 de dezembro.
Desde então, Beth resolveu mudar de vida. “Primeiro, decidi me resguardar mais um pouco e deixei o meu emprego. Também achei que precisava dar mais atenção à minha filha porque ela estava crescendo e eu deveria acompanhar as necessidades dela”. Se a violência é de estarrecer, o recomeço que ela se deu é ainda mais impressionante e revigorante: “Queria recomeçar mas pensava que o coração da gente não pode se impregnar do mal. Foi aí que descobri o poder da contação de história voluntária e, aos poucos, fui me transformando numa agente social”. Deu uma pausa nos 14 anos como técnica, trabalhando com prematuros.
Beth Queiroz matriculou-se no curso da Associação Empreendeler, instituição incubada no Porto Social, e passou a se dedicar a crianças com alto grau de vulnerabilidade social, à margem da sociedade, que vivem em creches, orfanatos, lares de abrigo que recebem inclusive filhos vítimas da violência doméstica e urbana. “Não faço contação privada, para os holofotes. Só faço contação social e voluntária hoje em dia. Busco promover a pedagogia do terceiro setor”, reforça ela, hoje aluna universitária do curso de pedagogia e que agora tem se dedicado em especial à periferia de Abreu e Lima e do Recife, como o Lar de Acolhimento Casa Vó Raimunda.
Esta semana, estava ela brilhando na Biblioteca Central do Recife, atendendo a convite da direção, falando sobre a negritude no Dia da Consciência Negra para meninos e meninas. “Vê só que tom de pele linda”, mostrava para o espanto deles. Impressionou aos pequenos, ao lado da filha Beatriz, a quem busca dar protagonismo, e que passou a ser chamada artisticamentee de Bia Sabiá. Para os garotos das escolas públicas, uma maioria negra, mostrou o que eles não conheciam: lindas bonecas negras. “Foi um frisson. Eles se autoidentificaram, olhavam para mim e meus cabelos black. Foi lindo”. Nas contações dela, a negritude tem um lugar especial. “Eu acho que a gente tem de plantar sementinhas. Faço minha parte, mas toda mãe e pai pode fazer o mesmo”.
Em casa, Beth cresceu com a orientação do pai, seu Durval, e da mãe, dona Alexandrina, funcionários públicos que faziam questão de ver o afoxé passar e pregar em casa a autoestima negra. A eles, deve muito da consciência social que tem hoje. Pequena, cheia de trancinhas, chorava dizendo que amigos a tinham chamado de “medusa” para o que a mãe respondia: “Menina, deixe de besteira, você uma negra tão linda, deixe disso”. Beth conta que nunca dona Alexandrina ou seu Durval ensinaram um revide a quem lhes atingia com preconceito.
Beth está nas ruas, nas escolas, nos lares de acolhimento de crianças vítimas de violência para apresentar um mundo lúdico a elas. Beth Queiroz, a agente de transformação social, tem consciência do poder de suas palavras. E mesmo que tenha vivido o trauma da violência, faz questão de divulgar a lição na qual acredita: “É preciso criar filhos sem redomas”.