25.11

Eram duas grandes amigas, mas o tempo fez de uma delas alguém que supervaloriza a aparência.

Luce Pereira (texto)
Silvino (arte)

Conquistar o mundo é apenas uma questão de dias e de reunir arrojados amigos em um pequeno e fervoroso exército. Perderam-se naturalmente, sem ninguém buscar que fosse assim, apenas porque laços e ideais ficam expostos a grandes desgastes quase que na mesma proporção, com o passar das décadas. E os caminhos se bifurcam, afinal. Mas, muitas vezes, o mesmo tempo que separa também dá um jeito de reaproximar e para isso conta com a ajuda decisiva da tecnologia, esta senhora alçada à condição de imprescindível em dias dominados pela estética virtual.
Foi assim: nesta semana, a surpresa – na caixa reservada do perfil mantido por Norma em certa rede social, uma mensagem que poderia significar belo recomeço de relação, cerca de 40 anos depois. E, claro, diante da possibilidade de emoções revividas, os olhos sempre ganham brilho extra. No entanto, os dela foram arregalando-se mais e mais, à medida que desciam pelo conteúdo. A amiga, que naquela época teria créditos de sobra até para integrar o tal exército de jovens conquistadores de mundos, seria aquela mesma, tão presa a estereótipos e sem delicadeza nenhuma, a certa altura do texto? A princípio Lucimar, a autora, rasgou-se em elogios à aparência da amiga de longas datas, depois de ver as fotos da última viagem à Europa, mas achou de expressar, com todas as letras, sua reprovação ao cabelo. “Está demodê”, disse, à queima-roupa. Segundo teorizou, uma pessoa de 60 anos deveria usar apenas cabelos curtos (como se os longos fossem privilégio apenas de jovens). E estabeleceu até um marco para o adeus à cabeleira: a partir dos 40.
Norma quis morrer. Não de desgosto, mas de indignação. Logo ela, que sempre respondeu com energia a todas as provações e provocações da vida, que sempre foi uma pessoa do seu tempo, irmanada com o social e amiga das grandes e necessárias metamorfoses, ter que ouvir aquilo de quem esperava mais sensibilidade e delicadeza era demais. Ficou zonza, o marido acudiu tentando minimizar, mas ela continua do tipo que não leva desaforo para casa, embora quase nunca abra mão da forma tranquila de dizer. Agradeceu o que pôde ser entendido como elogio – estava fisicamente bem para a idade, afinal – disse, porém, lamentar a observação sobre o cabelo, algo que a vida inteira a havia identificado. Por fim, decretou que a cabeleira seguiria com ela, pois era seu desejo transformar-se em uma velhinha dona de duas tranças prateadas.
Que coisa. Norma, muito chegada que sempre foi a reflexões sobre a vida e os habitantes dela, naquele dia ficou quase indócil, cheia de perguntas difíceis: por que as pessoas não vivem e deixam viver? Por que criam rótulos, estereótipos e padrões que servem apenas para arruinar a grandeza de existir, sobretudo quando já tiveram a oportunidade de constatá-la? Na próxima semana, a turma do curso “Clássico” vai se reunir numa rara farra de fim de ano – Lucimar entre os convidados, naturalmente – e Norma pensa em ir à forra, transformando a vistosa cabeleira em atração à parte. Sem exageros nem apelações, pois, afinal, se existe uma coisa que sempre soube foi abusar da classe.