Acidente na Tamarineira, domingo, com três mortos e dois feridos graves, propõe sérias reflexões.
Luce Pereira (texto)
Adaíra Sene/DP (foto)
O homem que repetia ser a vida um sopro – frase, aliás, que deu nome a excelente documentário sobre sua trajetória e obra – morreu aos 104 anos, depois de realizar sonho extraordinário para a maioria dos pobres mortais: como arquiteto, conceber a capital de um país, “gigante pela própria natureza”. Mesmo considerando-se o mais de um século plenamente vivido, a afirmação continua verdadeira. A existência não passa de um sopro. E o que dizer de pessoas muito jovens que mal começaram a sonhar e perdem a vida numa movimentada esquina, no início de uma noite de domingo, vítimas de brutal acidente de trânsito provocado por motorista bêbado? Neste caso, vale outra teoria do poeta da curva ,“O homem é um ser completamente abandonado”, porque vítima de circunstâncias sobre as quais não tem o menor controle. Mas, num Estado sério, que toma para si o compromisso de ao menos zelar pela integridade física dos seus habitantes, este abandono causa muito menos dor, destrói uma quantidade significativamente menor de famílias.
A esquina da Avenida Rosa e Silva com Padre Roma (Tamarineira), local do acidente, amanheceu com flores e a atmosfera da segunda-feira ganhou tons de desolação. O fato parecia pesar sobre as pálpebras das pessoas. Saldo da tragédia: mulher (Maria Emília Guimarães, 39), filho (Miguel Neto, 3) e babá (Roseane Maria de Brito, 23) mortos, marido (Miguel Filho Motta, 46) e filha (Marcela Guimarães da Motta Silveira, 5) gravemente feridos. O motorista que avançou o sinal vermelho, apenas com alguns machucados, declarando-se dependente químico e assumindo a bebedeira. Tudo, então, resumido ao luto de quem ficou para encarar as perdas e à expectativa sobre o grau de severidade da Justiça acerca da conduta do responsável pela tragédia. No entanto, qualquer punição, mesmo a máxima, é muito pouco diante do que significa a tarefa de construir uma família e alimentar o sonho de vê-la feliz durante a duríssima travessia dos anos.
Mais como cronista do que como repórter, sensibilizou-me foi constatar, para além da amargura trazida pelo fato, a dor coletiva, o tal sentimento de “abandono” que resulta em reflexões duras – sobretudo sobre nossa postura diante da resposta sempre pálida do poder público. Não bastassem todas as certezas sobre este “estar só”, mais uma se soma às impactantes e coloca em xeque o cidadão em que nos transformamos – apenas espectadores de desmandos/descompromissos, meras testemunhas do esgarçamento por que passa o tecido humano. Havemos de convir: é sempre muito desalentador ter a impressão de que jogamos a toalha, porque experimentamos a desagradável sensação de parecermos cidadãos de quinta.
Naturalmente, sem que mudem os jogadores ou a postura deles e as regras do jogo (além da nossa própria, claro), outras colisões gravíssimas continuarão surgindo. Não é possível que, como sociedade, nos contentemos em viver de luto, reclamando com palavras, nunca com gestos. Gestos simples. Por exemplo, jamais dirigir depois de um gole que seja e desestimular qualquer um a fazê-lo. Nunca enfraquecer o trabalho de uma blitz da Lei Seca, pois elas podem contribuir para que esquinas não amanheçam cheias de flores tão tristes. Deste modo, também, nunca alertar outros motoristas sobre a ocorrência da operação. Sim, pois potenciais criminosos quando protegem outros potenciais criminosos estão apenas robustecendo as chances de sobrevivência de uma sociedade cada vez mais doente. Se, como Niemeyer, não pudemos construir a capital do país, que ao menos contribuamos para socorrer a decência dele. E o sopro que é a vida terá a duração necessária para tentarmos celebrá-la.