06.12

Viagem de professora argentina de 79 anos a bordo de um motorhome inspira e mobiliza internautas.

Luce Pereira (texto)
Gabriel Melo/Esp. DP (foto)

Um leitor me escreve pelo canal reservado de certa rede social, sob inspiração do exemplo da argentina Sara Vallejo, que chegou ao Recife na última semana de novembro. Ela tem quase 80 anos e dirige um motorhome (veículo que também é casa) desde o Uruguai, seguindo “para onde o vento levar” por estradas do continente. O homem, também “maduro”, diz que a professora fez o que ele nunca teve coragem, por privilegiar mais os projetos de vida do que a urgência de se fazer feliz. E pede que eu escreva sobre liberdade, “tema tão atraente quanto distante para a maioria” – porque, corrosiva como se mostra, a rotina é uma espécie de rolo compressor sobre o desejo de sair por aí num voo solo, deixando simplesmente o acaso resolver tudo.
Para a decisão de Sara ter ainda mais valor, pesam alguns fatores: não achar que idade avançada e gênero são obstáculos para a realização de qualquer projeto de liberdade e não se intimidar com o tamanho do desafio, sobretudo quando não falta quem alerte sobre perigos iminentes em cada esquina. Os avisos não tiveram a menor influência quando ela decidiu vender carro e casa para comprar o veículo com o qual conheceria a América do Sul, demorando-se pouco aqui e ali em cidades e vilarejos mais atraentes, vez por outra na companhia de algum familiar ou amigo que vem ao seu encontro. Neste ponto, é preciso refletir sobre as condições que permitem o tal “voo” libertador: autoconhecimento, maturidade, consciência acerca do que se sente e quer, desejo de experimentar a vida pelo ângulo do prazer e da plenitude, indiferente a julgamentos. Depois de criar a família e ver os filhos caminharem com as próprias pernas, cuidando inclusive dos descendentes, ela resolveu se levar em conta. Podem chamá-la de aventureira, mas o que a professora parece mesmo ser é alguém que abriu os olhos e se olhou longa e amorosamente.
Ser livre, afinal, significa fazer as próprias escolhas, com maturidade para encarar ônus e bônus provenientes delas, inclusive o risco de exclusão, pois quem decide levar sonhos a sério passa a destoar do senso comum, assumindo ideias e ideais próprios, o que não é bem visto pela manada. Grupos não são geralmente tolerantes a comportamentos que destoam. No entanto, fazer parte do conjunto já não interessa àquele que optou por voar, ele deseja outros horizontes e perspectivas de vida, um olhar novo sobre o mundo. Foi o que fez a conterrânea de Mercedes Sosa ao deixar Tucuman a bordo do seu motorhome, tão decidida a exercer plenamente o direito de apenas seguir que mandou colar adesivo na lataria do veículo, onde se lê: “Vou para onde o vento me levar”. Convenhamos que, aos 80, é uma bela decisão, digna de quem já não se acha em dívida com ninguém ou coisa alguma.
O leitor se declara, agora, altamente estimulado a encarar a possibilidade de, enfim, empreender o próprio voo, mas sabe que, como Sara, ouvirá opiniões divergentes. A exemplo de milhares de internautas, ele acompanha a viagem através da página 80 años no son nada, que ela criou em uma rede social e que já é um sucesso. Segue as postagens para se alimentar de sensações já vividas pela professora de inglês, que dormiu em praias, acordou vendo o mar de algumas janelas, tomou banhos de cachoeira em chapadas e quanto mais avança em direção à Amazônia mais vai se enchendo de belas experiências e lembranças. Ao final, pode ser que regresse a Tucuman fazendo coro ao que cantava a famosa conterrânea: “Gracias a la vida/ que me ha dado tanto”. E o que de melhor se pode levar do mundo, além da emoção de constatar o quanto ele é deslumbrante?