11.12

Advogada de presos e perseguidos políticos, Mércia Albuquerque nos dava uma grande calma.

Urariano Mota (texto)
Annaclarice Almeida (foto)

Em 10 de Dezembro de 1948, a Assembleia Geral das Nações Unidas gravou para o mundo a Declaração Universal dos Direitos Humanos Já no seu preâmbulo, anunciava: “Considerando que o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da humanidade…”. Os seus artigos entre outros gritavam e continuam a gritar:
“Artigo 3 – Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal. Artigo 4 – Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos em todas as suas formas”.
Para todos que sobrevivemos à ditadura e temos sobrevivido ao mais recente golpe do congresso e judiciário, a Declaração Universal dos Direitos Humanos constitui um épico, um chamado à resistência. E marca mais fundo o seu artigo quinto, tão desrespeitado nas prisões brasileiras: “Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante”.
É nesse artigo da Declaração que lembro o trabalho da advogada Mércia Albuquerque. No Dicionário amoroso do Recife, escrevi sobre ela:
“Rua Sete de Setembro, 197, Edifício Ouro. Na década de 1970, era para lá que rumávamos. Entrávamos no edifício sem olhar para trás, rápido, como se ladrões fôssemos, como se fôssemos criminosos, como se já estivéssemos no Chile de Pinochet e ali penetrássemos para nos salvar em uma embaixada. Ali, no apartamento 52 do Edifício Ouro, uma mulher de estatura média, de olhos abrasantes, nos atendia. Elétrica, agitada, e, no entanto, nos dava uma grande calma.
Ninguém passa imune pela luta e drama desses jovens. Em 29 de janeiro de 2003 a doutora Mércia disse que ia ali e não voltou, vítima de um câncer que lhe devastou o ovário. Para ela, tantas vezes presente nas aflições dos perseguidos políticos, que tanto perigo correu por defender ‘terroristas’, que conviveu com a destruição física e humana de militantes, e também com o heroísmo imenso desses torturados, a causa mortis apontou parada cardíaca”.
Depois, em Soledad no Recife, pude narrar o seu depoimento sobre Soledad Barrett no necrotério:
“‘Em um barril estava Soledad Barrett Viedma. Ela estava despida, tinha muito sangue nas coxas, nas pernas. No fundo do barril se encontrava também um feto’.
Quando Mércia Albuquerque declarou essas palavras, não era mais advogada de presos e perseguidos políticos. Estava em 1996, 23 anos depois do inferno. Mércia estava acostumada ao feio e ao terror, ela conhecia há muito a crueldade, porque havia sido defensora de torturados no Recife. Ainda assim, ela, que tanto vira e testemunhara, durante o depoimento na Secretaria de Justiça de Pernambuco falou entre lágrimas, com a pressão sanguínea alterada em suas artérias. Dura e endurecida pela visão de pessoas e corpos desfigurados, o pesadelo de 1973 ainda a perseguia: ‘Soledad estava com os olhos muito abertos, com uma expressão muito grande de terror’. No depoimento da advogada não há uma descrição técnica dos corpos destruídos, derramados no necrotério. Mércia Albuquerque é uma pessoa se fraterniza e confraterniza com pessoas. ‘Eu fiquei horrorizada. Como Soledad estava em pé, com os braços ao lado do corpo, eu tirei a minha anágua e coloquei no pescoço dela’ ”.
Em meu recente romance A mais longa duração da juventude, ela retorna como o modelo de brava advogada:
“Surge ela própria, a bela e ardente advogada Gardênia Vieira. Ela não é alta, nem suave ou feminina, quero dizer, naquele sentido de bailarina delicada de porcelana. Pelo contrário, em vez de amparável, porque a sua fina louça podia quebrar, de Gardênia vem uma força moral que abriga, como tem abrigado mais de uma pessoa, físico e alma torturada no Recife. Mas além da fortaleza moral, de onde vêm a sua beleza e feminilidade? Era preciso vê-la para notar o que não se revela nos retratos. Gardênia olha firme e direto, como poucas mulheres usam e ousam olhar fundo em um homem, e nem por isso desperta o desejo mais carnal de sexo. De imediato, não. O desejo de amá-la viria espiritualizado, se podemos falar assim, quando à sua pequena altura, de olhar abrasante, associamos a coragem e os cadáveres que viu e denunciou, e o mundo abjeto contra o qual se indigna. Bem sei, ainda aqui não sou claro. Quero dizer, o amor à mulher Gardênia Vieira vem não só misturado ao respeito à pessoa, mas em essência à sua visitação aos cadáveres de socialistas torturados”.
Mércia sempre foi os Direitos Humanos no Recife.