16.12

Os operários na minha janela: a vida como ela é

Apesar da jornada extenuante, eles cantam e parecem de bem com a vida. Afinal a sexta-feira chegou.

Luce Pereira (texto)
Greg (arte)

Chegam os homens que há alguns meses trocam o revestimento da fachada do “meu” prédio. São cerca de oito e já os reconheço até pela voz, de tanto que gritam de um para o outro enquanto trabalham e de tanto vê-los atrás dos vidros das janelas, pendurados na tal “balança”, espécie de baú suspenso por cabos de aço, que nunca me parece seguro o bastante para protegê-los numa altura de 13 andares. Aquela visão repentina é bem desagradável, sem dúvida, pois a gente se sente como que o tempo inteiro seguida por pares de olhos estranhos, rapazes assoviando músicas medonhas (ao menos para o meu gosto), além de nem se darem conta do quanto da vida pessoal vão deixando escapar a cada nova pedra assentada. Quando estou em casa o dia inteiro, impossível não ouvir as conversas, rir com algumas e me entristecer com outras. Mas, ao contrário do que se poderia imaginar, parecem de bem com a vida somente pelo fato de ter um emprego e o “dinheiro para o leite dos meninos”. Modo de dizer: a magreza do salário acaba gerando análises sobre o pendura feito na quitanda ou o pedido de dinheiro emprestado à sogra para pagar a fatura em atraso do cartão de crédito (de anuidade gratuita). “Sabe como é dezembro, roupa pros moleques, uma comidinha melhor … “, vão se desculpando sobre as causas do iminente desastre financeiro. E ainda tem janeiro, espécie de adeus às ilusões para o cidadão comum.
Chegam sempre muito mais animados às sextas-feiras e os motivos, bem previsíveis, são gritados pelos que se encontram nas alturas aos que se acham no apoio, em terra, e vice-versa, embora o chefe, em atividade na “balança”, lidere até mesmo na falação. Como fala, aquele sujeito … “Ô, ´bença´, tu nem imagina a cerveja geladinha que tá me esperando em casa!”, ao que o outro responde com uma queixa: “Minha geladeira tá mais vazia do que jogo da Série C”. Rio, mas depois me vem uma dúvida: disseram-me que todos são evangélicos e eu acreditei, a julgar pelos hinos misturados aos bregas lancinantes, que só cessam no intervalo para almoço e na saída. Os tratamentos, também, me fizeram pensar assim. Irmão, Bença, Pastor, por exemplo, apesar de dois destoarem dos demais – Shakira e Ruído. Sem uma explicação melhor, deduzo que os bebedores devem fazer parte da ala light da religião, assim como existem os carismáticos, do lado católico, que deram uma rasteira na sisudez histórica da Igreja. Mas não é isso que importa e sim o bom humor, que não encolhe nem com o sol escaldante nem com a dureza do ofício nem com o medo de não viver o suficiente para se aposentar.
“Ouvisse dizer que a gente só vai se aposentar depois de bater as `bota´, Bença?”, disparou o chefe para Shakira, que, negando a alcunha, cantava uma música sertaneja e parou no meio da frase em que o protagonista prometia amanhecer na praça.“Oxe, mas o povo vai deixar, é?”, devolveu o rapaz, parecendo, porém, muito mais interessado em continuar com a cantoria. A pergunta que ficou sem resposta foi a que deveríamos todos fazer antes de fevereiro, quando será posto em votação o projeto de reforma da Previdência, adiado nesta sexta-feira pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Sob pena de perdermos, além de indiscutível direito constitucional, a voz e a garantia mínima de um futuro menos desalentador.