Em Foco 1703

Não reconhecer o que está acontecendo nas ruas impede encontrar a melhor forma de recuperar a confiança de uma população que está cada vez mais externando sua insatisfação. Tema do Em Foco do Diario de Pernambuco desta terça-feira, por Vandeck Santiago. A foto é de Julio Jacobina.

Depois dos protestos

Vandeck Santiago  (texto)
Julio Jacobina  (foto)

A pior forma de avaliar as manifestações de domingo é tentar desqualificá-las.
Fazer isso equivale a não entender o recado que está saindo das ruas. E leva ao perigoso raciocínio de desprezar os efeitos de uma multidão nas ruas.
Vamos por partes, para tentar ser didático:

1) A realidade não é estática, ela se transforma, e às vezes muito rapidamente. As manifestações do final de 2014, pós-eleição, eram fruto da dor de cotovelo dos que perderam a eleição. Os atos de protesto que se seguiram tinham ainda muito disso. Mas o de domingo foi algo diferente: foi muito maior, com mais diversidade e engajamento. Se você for medir os protestos de domingo com a mesma régua que mediu os do pós-eleição em 2014, comete o erro de não perceber a mudança da realidade e a incorporação no processo de novas fatias da população.
2) Se não tivessem efeito prático nenhum, os atos de domingo já teriam servido para mostrar que a insatisfação contra o governo não é exclusividade da “elite branca etc.”. Este raciocínio se mantém ainda em relação aos panelaços, mas até aí está errada. O primeiro panelaço ocorreu durante o pronunciamento de Dilma. Pode-se argumentar que foi convocado com antecedência e coisa e tal (não me convence como explicação, mas fica aí o registro). O segundo panelaço – domingo, durante fala dos ministros José Eduardo Cardozo e Miguel Rosseto, na TV – ocorreu sem convocação prévia. Deu-se em bairros de classe média, é verdade, mas achar que isso explica o fenômeno como se fosse exclusivo de uma classe impede ver que esse tipo de protestos está se ampliando e surgindo espontaneamente. Anotem o que vou dizer, baseado na experiência de quem acompanha diretamente a luta política no Brasil desde o momento em que Lula era apenas um candidato a presidente de sindicato: só falta um triz para que cedo ou tarde os panelaços aconteçam também em bairros e comunidades pobres. Imaginem o impacto se/quando isso acontecer.
3) Ver os protestos apenas pela ótica das (lamentáveis) cenas de gente pedindo “intervenção militar” e falando em enterrar a democracia é outra forma de não compreender o que está acontecendo. É preciso ver aí que também aí estão ocorrendo mudanças: no Rio, Bolsonaro foi impedido de falar no carro de som e até vaiado. Também lá um ativista com um cartaz pedindo intervenção militar foi hostilizado por partes da multidão. Em São Paulo, uma turma que defendia a mesma coisa e carregava rojões e soco inglês, foi acossada pelos demais manifestantes, e tiveram que ser retirados pela polícia. Não há dúvidas que os conservadores estão em grande escala nos protestos, defendendo seus pontos de vista (com todo direito a fazê-lo, por mais bizarros que pareçam a quem pensa diferente, como o brado na faixa “Basta de Paulo Freire”). Mas aqueles que propõem o retorno da ditadura representam um grupo minúsculo nas manifestações (às vezes formado só por quem carrega as faixas…) e não têm o aval de nenhum político ou entidade séria. Sem falar que a grande maioria dos exemplos vem de SP. E, minha gente, se esse pessoal da “intervenção” tivesse poder de colocar milhares de pessoas nas ruas em todo o Brasil nós já teríamos todos que fugir para as montanhas…
4) As críticas que tentam desqualificar as manifestações seguem dois pontos centrais: a) que seriam obra da “elite etc. e tal”. b) que seriam representação da turma da “intervenção”. Aí são todos os ovos da refutação jogados numa cesta só, o que é um erro em termos de argumentações, porque se forem desmentidos deixam seus partidários sem argumento. O primeiro item já foi descartado até pelo próprio governo, depois de domingo. Em relação ao segundo, imaginem se amanhã esses grupos forem isolados. Imaginem se os líderes da oposição se reunirem e fizerem uma condenação enfática deles (já deveriam ter feito, aliás). Imaginem se a miudeza dos que querem a ditadura de volta for exposta a todos. E aí, o que vão dizer quem tenta desqualificar os protestos? No geral, esses dois argumentos de refutação (o “a” e “b”) impedem o reconhecimento do que está ocorrendo lá fora, e sem isso fica mais difícil encontrar a melhor resposta para os acontecimentos.
5) Creio que não se deu o devido destaque ao fato de os manifestantes de domingo terem ganho uma importante batalha simbólica: a da utilização dos símbolos nacionais, o verde-amarelo, a bandeira do Brasil etc. Esse tipo de coisa tem um tremendo poder arregimentador quando grupos políticos e setores da sociedade convergem numa mesma direção.
6) Para encerrar, convém que se diga que Dilma Rousseff é a presidente legitimamente eleita e que não há nada que justifique um eventual impeachment dela.