Em Foco 1803

Governo francês agora se junta a países que estão dispostos a lutar contra a anorexia física e mental. Lei, se for aprovada, punirá com multa e prisão donos de agências que contratem modelos com o Índice de Massa Corporal abaixo da média. Tema do Em Foco do Diario desta quarta-feira, por Luce Pereira. A ilustração da página foi feita por Jarbas.

Canhões contra a ditadura da magreza

Luce Pereira  (texto)
Jarbas  (arte)

Não há como ignorar que existe uma mudança em marcha contra a ditadura da magreza, responsável por levar milhões de mulheres a perigosos extremos como a anorexia. Ontem, o governo socialista da França disse que está a favor de uma das emendas apresentadas à Lei da Saúde, proposta pelo deputado Olivier Veran. Quando aprovada, ela poderá punir com multa de 75 mil euros e seis anos de prisão donos de agências que permitam modelos desnutridas nas passarelas e todas terão que apresentar atestado médico comprovando ser o Índice de Massa Corporal de cada desfilante superior a determinado número. Naturalmente, o Sindicato Nacional das Agências de Modelo (Synam) da França reagiu à proposta, sob o argumento de ser imprescindível um “enfoque europeu”, a fim de que as profissionais francesas não fiquem em desvantagem em relação às colegas do continente – embora países como Itália, Espanha e Bélgica já tenham aprovado leis ou criado regulamentos acerca do assunto.
O número de vítimas deste tipo de escravidão realmente produz espanto e deveria motivar a Organização Mundial de Saúde (OMS) a exigir que haja posicionamento rápido e enérgico das nações no combate ao problema. O deputado, ao defender a emenda, disse que existe hoje na França de 30 mil a 40 mil pessoas sofrendo de anorexia mental. Em 90% dos casos, adolescentes. “O impacto social da imagem transmitida pela moda, segundo a qual as mulheres devem ser magras a um nível patológico para ser bonitas e poder desfilar, é muito forte”, justificou ele.
Forte e extremamente maléfico. O resultado de tanta angústia para atingir o atual padrão de beleza vem preocupando bom número de profissionais em diversas áreas do conhecimento, todos empenhados em relaxar os nós que mantêm cativas pessoas presas ao modelo. A proposta é ajudá-las a que repensem a relação com o próprio corpo e se sintam bem experimentando perspectivas diferentes. Fácil não é, pois desde o século 19 a engrenagem do capitalismo trabalha a favor desta dependência, com as indústrias cosmética, da moda e do entretenimento, a medicina estética, o mercado publicitário e outra infinidade de gigantes trabalhando contra a “libertação”. Mas, também, não é impossível. O desafio começa a ser vencido quando se sabe que mudanças profundas de comportamento não acontecem do dia para a noite.
Aliás, de vez em quando, o canhão contra a ideia de que só corpos magros produzem felicidade dispara tiro certeiro. Em 1992, com o lançamento do livro O mito da beleza, a autora, Naomi Wolf, defendeu a teoria de que só falta às mulheres destruir mais este grilhão para obter a igualdade plena. Segundo ela, que se valeu de dados estatísticos, “a indústria da beleza e o o culto à bela fêmea manipulam imagens que minam a resistência psicológica e material femininas, reduzindo as conquistas de 20 anos de lutas a meras ilusões”. Quem lê ou relê, diz que a obra continua atual.
Esta obsessão, a propósito, vive alimentando grande parte da mídia com episódios grotescos. Não dá para esquecer quando, em 2014, a atriz e cantora mexicana Thalia apareceu em uma foto no Instagram exibindo um pote com ossos para ironizar boatos de que, nos anos 90, havia retirado algumas costelas para chegar à sua marca registrada: a cintura finíssima. “Para todos os meus fãs filipinos, aqui está a prova. Minhas famosas costelas. Eu as mantive comigo durante todos esses anos. #mito”, escreveu na postagem.
Crítica a pressão tão exagerada, produzida até por um corte de cabelo considerado mais bonito, acabou rendendo, ano passado, prêmio no Festival de Curtas de Bruxelas para o diretor parisiense Frédéric Doazan, com o filme Supervênus. Ele usou justamente o exagero para em apenas dois minutos e meio, sem o uso de legendas, demonstrar o horror que tudo isso representa na vida real. Aos que porventura se sentem tentados a sucumbir à tentação, o também francês Honoré de Balzac dá um conselho: “Deve-se deixar a vaidade aos que não têm outra coisa a exibir”.