Em Foco 2003

Há leis coibindo todos os abusos da poluição sonora, mas um pouco de bom senso dos que provocam o barulho já seria suficiente para reduzir o sofrimento que causam a bebês, jovens e adultos. Tema do Em Foco do Diario de Pernambuco desta sexta-feira, por Vandeck Santiago. A foto da página é de Alcione Ferreira

Inferno sonoro

Vandeck Santiago  (texto)
Alcione Ferreira  (foto)

A vida de qualquer pessoa vira um inferno no momento em que ela começa a perceber um barulho que a incomoda. As cidades são o santuário do barulho, e a poluição sonora está conosco durante as 24 horas do dia. Vivemos tão expostos a ruídos que nos habituamos a escutá-los como parte da vida. Até o dia em que um desses ruídos se singulariza, seja pela intensidade, pela repetição ou por ser muito diferente de todos os outros. Capta sua atenção, entra na sua mente – e aí o seu inferno começa. Tem gente que recorre a tranquilizantes para enfrentar o problema. Tem gente que procura a polícia, o Ministério Público, a prefeitura. Tem gente que briga, tem gente que se desespera e, em casos extremos, tem gente que até mata. A poluição sonora tornou-se uma doença social.
Todos os barulhos são ruins, mas os piores são os noturnos, quando o seu organismo pede repouso e tudo que você deseja na vida é um sono sossegado. Durante meses morei num apartamento ao lado de uma casa de shows, sem proteção acústica nenhuma. Nas noites de sextas e sábados, eu saía de casa às 22h, ia para o aeroporto (o prédio era próximo de lá) e voltava à meia-noite. Fazia isso com o objetivo de estar tão cansado ao voltar pra casa que nenhum barulho fosse capaz de me impedir dormir. Imaginem o mal que uma rotina dessas, repetida final de semana após final de semana, pode causar em uma pessoa…
O final dessa história, graça a Deus, foi feliz. Após cerca de dois anos de luta dos moradores do prédio – recorrendo a todos os órgãos públicos possíveis para coibir o abuso – a casa de shows foi fechada. Mas há casos que duram anos. Outros que nunca cessam. E nem sempre as vítimas são apenas os adultos; há muitas que sofrem e externam seu sofrimento chorando, por não saber falar: são os bebês. Nestes o ruído os faz acordar abruptamente ou provoca susto. Um dos maiores vilões desse tipo de delito são as motos com escapamento adulterado, que faz com que elas produzam um barulho muito maior do que o normal. Se cada motociclista possuidor de uma moto assim soubesse quantos sustos já pregou em crianças a partir das 22h e até o início da manhã, pensaria duas vezes antes de dar aquelas arrancadas em áreas residenciais.
O fato é que bebês, crianças, adolescentes, homens e mulheres, todos sofrem com o barulho, como mostra reportagem de Anamaria Nascimento, no Diario de hoje. Todos nós um dia ou outro, ou muitos, já acordamos antes da hora por causa do som de buzinas dos carros. Ou com o som dos próprios carros. Ou fomos incomodados com shows em bares. Ou com o arrastar de mesas dos bares madrugada adentro, em lugares inapropriados para isso. Ou com vizinhos que têm o hábito de fazer a faxina da casa a partir das 23h, ou de assistir televisão com o volume em 25. Ou com manifestações religiosas. Ou com o alarme daquela casa comercial que dispara de madrugada e só pode desligado de manhã, quando chega o dono. Ou até com aquele tim-tim-tim do alarme dos portões de prédios – no Recife já tivemos até um abaixo-assinado endereçado ao Ministério Público Estadual que trazia um dado interessante: “Um edifício com 20 andares e dois apartamentos por andar, se cada família contar com apenas um automóvel, teremos 40 automóveis entrando e saindo, pelo menos uma vez ao dia, ou seja, pelo menos 80 disparos dos alarmes sonoros, numa estimativa bastante modesta”. Todos os dias eu passo em frente a um prédio de Boa Viagem em que o alarme do portão é exatamente igual àquela trilha sonora do assassinato no chuveiro de Psicose. Minha Nossa Senhora…
Já está comprovado que a poluição sonora é capaz de provocar diversos problemas físicos e psicológicos: agressividade, perda de memória, dores de cabeça, aumento da pressão arterial, cansaço, queda de rendimento escolar, baixa produtividade no trabalho, insônia, problemas nervosos, estresse, depressão…
Conforme demonstra o Ministério Público Estadual, em campanha de 2010 (Som sim, barulho não), o sossego do cidadão é assegurado pela “Constituição Federal, pelo Código Civil, por Lei estadual, algumas municipais, penais e finalmente, leis trabalhistas e convenções internacionais”. Ou seja, o cidadão está acobertado para buscar o fim dos abusos por vias legais. Muitas manifestações da poluição sonora, porém, poderiam ser evitadas de forma mais simples, se as pessoas que as provocam tivessem um mínimo de bom senso.