Em Foco 2803Movimento “A Hora do Planeta” vai deixar hoje estabelecimentos e praças públicas às escuras por uma hora como alerta para os efeitos do consumo da energia e do aquecimento global. Tema do Em Foco do Diario de Pernambuco deste sábado, por Silvia Bessa. A foto que ilustra a página é de Teresa Maia

A escuridão de Carine

Silvia Bessa  (texto)
Teresa Maia  (foto)

O café servia como energético. A farinha tinha a função de provocar saciedade. A água dava a liga para a massa amarela que Carine de Jesus Souza, de dois anos, comia com gosto no prato raso de alumínio. Ela lambuzava a boca e lambia os lábios porque não tinha nada além desse alimento. Teve dias de encher a barriguinha assim no café, almoço e jantar naquela casa humilde que visitei na zona rural de Monte Santo, município do Sertão da Bahia. Carine e a cena que vi com a fotógrafa Teresa Maia, quando produzíamos a premiada reportagem especial O Brasil que mais vai sofrer com o aquecimento, foi uma das mais marcantes de uma longa carreira como repórter.
Carine era personagem que ilustrava o “miolão” do semiárido, área do país que identificamos como a mais vulnerável do Brasil às mudanças climáticas. Perdi as contas de quantas vezes citei essa menina em palestras sobre jornalismo ou sobre clima. Para mim, ela é emblemática de uma viagem de sete mil quilômetros por cinco estados do Nordeste e de uma preocupação que existia em 2007 e que continua hoje. Carine morava com mãe e irmão. Quase isolada, a família tentava lidar com a falta prolongada de chuvas, a alta evaporação, o solo seco, a colheita reduzida (ou extinta), o gado morto, e migração (o pai da menina disse que iria para o Sudeste em busca de emprego e nunca mais voltou) e a fome que rondava a todos – ainda que os fenômenos não fossem nominados.
Foi uma entrevista marcante, cheia de silêncios, a que tive com a mãe da menina. Lembro que uma grande dúvida me abateu: entrevistar ou correr dali para comprar comida e saciá-los. Entrevistei, não fiz promessa e depois mandamos um motorista entregar mantimentos que levamos no carro. Continuei a jornada. Estava determinada a pesquisar em campo o que um mestre da climatologista do país havia me dito. Professor José Marengo, referência do Instituto Nacional de Pesquisa Espacial (Inpe-SP), havia afirmado que o “Aquecimento não é causa de pobreza, mas a pobreza piora com os péssimos indicadores climáticos”. Isso porque, como explicava ele, os hotéis do Recife, Salvador ou Fortaleza podem dar um jeito na estiagem, seca ou na evaporação da água. Mas quem mora no interior, não. Em busca de mostrar quem eram os brasileiros que mais sofreriam com o aquecimento, seguimos.
Nas salas de aula, quando eu falo de Carine lembro que o aquecimento está muito mais próximo da realidade da gente do que se pensa. No Nordeste do Brasil, área por onde ando, mais expostos estão aqueles que vivem nos grotões porque eles precisam lidar com a seca sazonal, questões econômicas e sociais. Uma condição climática mais rígida se torna um “forçante” sobre um quadro já preocupante.
Tem dias que leio (ou assisto) sobre seca no Nordeste ou racionamento de água em São Paulo e tenho certeza que debater aquecimento global saiu de moda porque não vejo com frequência gente que faça paralelo entre o que se vive e o que se previa há uma década. Lamento porque acho que essa relação é por demais próxima – conclusão que talvez seja resultado do que andei e conversei para produzir esta reportagem sobre mudanças climáticas e outras dezenas sobre o Nordeste mais pobre.
Acho que o aquecimento global já está afetando nossas vidas e, por isso, gosto de iniciativas semelhantes à que a rede WWF promove hoje em todo o país, com o apoio de estabelecimentos privados e empresas públicas. O Marco Zero, no Centro do Recife, ficará às escuras por uma hora neste sábado a partir das 20h30, assim como centros culturais e shoppings vão aderir ao movimento mundial “A Hora do Planeta”, que tem como objetivo fazer um alerta para o consumo mais racional da energia. É válido como mola propulsora para reflexão.
A gente não pode esquecer que pior que ursos polares, animais-símbolos do aquecimento global, há pessoas que sofrem (e muito) com os efeitos das ações do homem sobre o meio ambiente. Poderia relembrar aqui Carine, mas são milhares delas, e dos nossos.