Em Foco 3103

Média de filhos das famílias mais pobres do Nordeste tem a maior queda do país: 26,4% em 10 anos. Número derruba mito de que Bolsa Família estimula aumento de natalidade. Tema do Em Foco do Diario de Pernambuco desta terça-feira, por Vandeck Santiago. A imagem que ilustra a página é da repórter fotográfica Annaclarice Almeida.

A surpresa que vem dos pobres

Vandeck Santiago  (texto)
Annaclarice Almeida  (foto)

Comecei a viajar pelo interior do Nordeste nos anos 1980, em busca de matérias que fugissem à rotina dos assuntos da capital. Aqui mesmo pelo Diario viajei muitas vezes com o saudoso Fernando Gusmão. Figura de extraordinário bom humor, Gusmão era o fotógrafo que acompanhava o colunista João Alberto na cobertura dos principais eventos sociais do Recife. Mas tinha pique de iniciante quando saíamos interior afora a cobrir histórias de pobreza e sobrevivência, passando dias a fio comendo e dormindo precariamente. Nas décadas seguintes continuei fazendo matérias semelhantes, agora como repórter de outros veículos e já sem a companhia de Gusmão, que faleceu em 1999, aos 60 anos. Em todo esse período, uma cena comum no interior era a do grande número de pedintes nas ruas e muitas crianças – cercavam o carro do jornal, nos abordavam quando parávamos em algum lugar. Nos últimos anos, porém, esta cena esvaneceu-se. Os pedintes praticamente desapareceram, e não há crianças perambulando pelas ruas como antigamente. “Ninguém vê mais um ceguim na rua”, me disse um cidadão que entrevistei para matéria em Sousa, no Sertão paraibano. “E os mininos tão na escola”.
Por diversos motivos, o cenário urbano do interior nordestino modificou-se radicalmente. Um desses motivos – o principal no caso dos dois exemplos acima mencionados – são os programas sociais federais, em especial o Bolsa Família. Qualquer pessoa que nas últimas décadas tiver viajado pelos municípios do Nordeste terá percebido a mudança. Quem não percebeu, é só prestar atenção nas estatísticas que ano a ano vêm dando confirmação de “verdade documentada” ao que aos nossos olhos surgia apenas como impressão.

Passado
A estatística mais recente, reverberada ontem na internet, foi divulgada pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) no período de 2003 a 2013. Revela que o número médio de filhos nas famílias mais pobres (beneficiárias do Bolsa Família) caiu mais que a média brasileira. A queda do número de filhos até 14 anos foi de 10,7% no Brasil e de 15,7% entre os mais pobres.
E no Nordeste, como foi? Aqui a queda foi ainda maior: 26,4%. Pouco mais de um quarto. É um percentual significativo em qualquer amostragem, sobre qualquer assunto. Ganha realce ainda maior porque derruba um mito cultivado por quem acha que o cenário no Brasil adentro ainda é o mesmo de décadas passadas – o mito de que o Bolsa Família aumenta a natalidade, estimula as famílias a terem mais filhos para ganhar mais bolsa.
A queda de fecundidade não é um fenômeno novo no Brasil. Mas ela era destacável sobretudo entre as mulheres mais escolarizadas e de maior poder aquisitivo. A novidade é que este fenômeno esteja se verificando também nos estratos mais pobres, aqueles que estão lá embaixo na pirâmide socioeconômica.
Lembro que nos primeiros anos do Bolsa Família uma das críticas mais frequentes era o risco de o programa causar uma explosão populacional entre os mais pobres.
A elevação do nível escolar, o acesso a serviços médicos e informações sobre sexualidade e métodos contraceptivos são fatores que favorecem a queda da fecundidade. O Bolsa Família toca diretamente em pelo menos um ponto aí: o do acesso à informação. A cada seis meses as mães têm de levar os filhos para acompanhamento nos postos de saúde.
O fato é que aquelas mães com filhos numerosos que eu e o amigo Fernando Gusmão encontrávamos são cada vez mais uma cena do passado, uma fotografia amarelando ano após anos nas páginas do jornal.