Cena vista ontem no Canal do Arruda não é isolada; Ipea diz que situação da cidade é “preocupante”.
Silvia Bessa (texto)
Paulo Paiva (foto)
Tem um banheiro improvisado, feito de madeira e lona, no meio do caminho. O desmonte dele é espécie de rotina. Os técnicos de fiscalização viram as costas, seguem trabalho e logo há outro sanitário precário semelhante erguido por moradores das margens do Rio Beberibe e – acrescento – pode ser visto por quem transita de carro, vidro fechado e ar-condicionado. Era o que se lia no noticiário, em explicações das autoridades sobre o recolhimento de toneladas de detritos nas proximidades do Canal do Arruda, bem próximo ao Estádio José do Rego Maciel do Santa Cruz. Ontem a água do Canal do Arruda amanheceu coberta por garrafas, plásticos de toda natureza, móveis, alimentos estragados e descartes dos mais diversos. A imagem, por infelicidade recorrente em especial do recifense do Arruda, é das mais tristes. Inevitável a pergunta: de quem é a culpa?
Há quem creia ser da população, rotulada como mal-educada, que não segue as orientações das autoridades e dos agentes de saúde, sanitários e ambientais. Outros apontam o dedo para instituições públicas da prefeitura, que prometem melhoria da área urbana, com iluminação, árvore, projeto de drenagem e não avançam na execução. Pode haver uma coparticipação importante, mas arrisco dizer que o problema é muito maior que somente de costume ou urbanístico. A culpada maior pelo mar de lixo do Canal do Arruda e da cena que causa incômodo e inquietação para aqueles que vivem numa metrópole como o Recife é a pobreza.
É nesta hora que se deve lembrar que o cidadão mais pobre não tem na maioria das vezes instrução suficiente para lidar com o lixo; em algumas ocasiões, sequer escola para estudar, roupa ou comida para ir a uma. Nem banheiro dentro de casa, moradia digna, lazer para as crianças. Muitas delas até dão mergulho na água suja do canal por não terem outras maneiras de diversão. Para os adultos, falta emprego, recursos para remover para longe dali o móvel velho que lhe deram. Como esperado, não vão saber dar explicações ou teorias pela sua suposta “falta de educação”. É nesta hora que é imprescindível vincular estudos econômicos e sociais dos quais moradores das margens do Canal do Arruda também se encontram. A análise mais recente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que faz parte da nova plataforma digital do “Atlas de Vulnerabilidade Social”, divulgada em agosto deste ano, traz uma contribuição.
Mostra que o Brasil mantém uma tendência de queda da vulnerabilidade social, de acordo com dados cruzados a partir da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad). Foram analisadas macrorregiões metropolitanas e municípios. O texto de apresentação destaca assim: “O desempenho mais preocupante foi o do Recife: crescimento de 16% na vulnerabilidade social. São Paulo (2,4%), Porto Alegre (0,4%) e Fortaleza (3,9%) também tiveram piora no IVS. Os melhores resultados no período foram de Salvador – redução de 15,5% –, Belém (14,3%) e Belo Horizonte (10,9).” O índice se refere ao período 2010-2015 e é o último avaliado. Para fins de comparação, diz outra parte do documento, a “Região Metropolitana do Recife havia reduzido sua vulnerabilidade social em 24% no período de 2000-2010”.
Recife aparece com resultados ruins quando trata do “Capital Humano” (“Apresentou estagnação do seu valor”, enquanto as demais regiões tiveram bons resultados), “Renda e Trabalho” e “Infraestrutura urbana”. Neste último item, Recife lidera a “significativa piora de indicadores” – palavras do Ipea.
Há razões para pensar que o Canal do Arruda é a cena do somatório de todos esses indicadores. E que a população dali é também vítima.