31.10

Radicalização do debate sobre questões morais e comportamentais não deixa espaço para a neutralidade.

Vandeck Santiago (texto)
Marcos Hermes (foto)

Nas eleições de 2018, escreveu Leonardo Sakamoto, “os temas comportamentais e morais, apesar de fazerem sucesso nas redes sociais hoje, não devem ser o fiel da balança do voto”. Sakamoto é uma das mentes mais lúcidas que temos entre os observadores do cotidiano, mas creio que nesse caso específico a realidade será bem diferente da que ele prevê. Casamento gay, questões de gênero, valores da família tradicional e outros temas que podem ser incluídos no rol simplista de “gente pelada em museu” — isso vai ficar em segundo plano na disputa eleitoral?… Duvido. Trata-se de um tema de forte apelo eleitoral, que vem de longe.
Lembro de ataques (ora subreptícios, ora ostensivos) que se fazia a Jarbas Vasconcelos em campanhas dos anos 1980/1990, aludindo ao fato de que ele não tinha uma família “tradicional”. Em 1989, a campanha de Collor apresentou depoimento de uma mãe dizendo que Lula a tinha incentivado a abortar. Em 2010, Dilma viu sua eleição ameaçada após campanha que a chamava de “assassina de criancinhas”, expressão dita pela mulher de um dos candidatos durante reunião com evangélicos, no Rio. Exemplos de uma época em que havia um certo pejo em tratar do assunto dessa forma. Hoje o ambiente é outro, tanto na forma de transmissão de notícias (com as redes sociais) quanto no conteúdo (no qual inclui-se um item explosivo, o da “notícia falsa”).
Não é algo exclusivamente brasileiro. A onda é mundial. Na França, por exemplo, a partir de 2013, surgiram pelo menos dois grandes movimentos na luta contra casamento entre homossexuais e defesa dos “valores familiares tradicionais”: o “Manif pour tous” (Protesto para todos) e o “Sens Commun” (Senso Comum). Ambos participando ativamente da luta política e eleitoral.
É um engano pensar que movimentos com tais características atingem apenas setores religiosos mais sensíveis ao tema — há muitas famílias que não caberiam no rótulo tradicional de “conservadoras”, mas que se sentem incomodadas, ou pouco à vontade, diante das questões “comportamentais e morais” hoje em evidência. Há uma tendência no Brasil a considerar que o brasileiro em geral é conservador — sem levar em conta o lugar, o momento social e econômico, a multiplicidade de opiniões na cabeça de cada um. Dentro do mesmo cidadão ou da mesma cidadã pode ter pensamentos “conservadores” em relação a determinados temas e “progressistas” quanto a outros, com um e outro prevalecendo em determinados momentos e com relação a este ou aquele candidato.
A pauta “comportamental e moral” comporta questões capazes de gerar paixões, galvanizar militantes e expandir suas ações para outras áreas da vida — e aí está um dos seus principais calcanhares de Aquiles. Não é porque o camarada é contra a presença de crianças assistindo a manifestações artísticas com pessoas nuas, por exemplo, que ele vai ser favorável a medidas que em outro campo lhe parecem contrárias a seus direitos como trabalhador, ou que aos seus olhos privilegia os mais abastados em detrimento dos mais pobres. Não é porque algo lhe pareça exagerado que você passa a defender censura. Não é porque determinada manifestação careça, ao seu ver, de qualidade artística que você vai sair por aí generalizando ataques aos artistas.
Ao “gerar paixões, galvanizar militantes e expandir suas ações para outras áreas do cotidiano das pessoas”, as questões “comportamentais e morais” também provocam um fluxo contrário contra seus pregadores. Isso já está acontecendo no Brasil, e um exemplo claro vê-se no comportamento de Caetano Veloso, irrequieto artista que nunca foi refém de pensamento único e que nos últimos anos esteve às turras com setores da esquerda. Pois bem, Caetano ontem iria realizar um show em São Bernardo do Campo em apoio à ocupação Povo sem Medo, onde estão cerca de 8.000 famílias de sem-teto. Vejam só: ele sai de uma posição sem militância dos últimos anos para apoiar uma das causas mais radicalizadas da esquerda, que é a dos sem-teto. O show foi cancelado por decisão judicial; o principal, porém, já havia sido feito, como resumiu o escritor Marcelo Rubens Paiva, filho do desaparecido político Rubens Paiva: “Caetano saiu do sofá e voltou a militar”.
Trata-se de reflexo da pauta de questões “comportamentais e morais” — ela não deixa espaço para a neutralidade ou para a observação distante no sofá. Exige uma tomada de posição. E essa exigência não tem como não estar presente nas eleições de 2018.