Givanildo Amâncio é o músico que há 25 anos seguidos leva conforto a cemitério no Dia de Finados.
Silvia Bessa (texto)
Arquivo pessoal (foto)
Certo dia, aluno de Licenciatura em música, achou que tinha convencido os amigos a irem juntos ao Cemitério de Santo Amaro (Recife) em um dia como hoje, de Finados, para fazer arte em memória dos que se foram. Foi surpreendido pela ausência coletiva. Então, sozinho, Givanildo Amâncio entoou as notas da Ave Maria com o seu violino. Tocou em repetição dando círculos para ser ouvido por muitos. “Foi quando percebi que populares começaram a me pedir que tocasse para os seus mortos. ‘Moço, vem aqui’, me diziam. Um pediu para eu tocar para a mãe, outro para o pai, avô, para a cunhada”, recorda o hoje musicista, pianista, regente de coral. No início, até motivo de piadas ele foi. Ex-seminarista franciscano, teve uma passagem rápida como estudante de Medicina, até que a música o apaixonou e o mobilizou. Abraçou-se à persistência. São exatos 25 anos de uma ousadia delicada que acalenta enlutados, de uma ideia transformadora que enfrenta um tabu continental.
Salve. O ex-estudante dos vinte e poucos anos, agora com 47 anos, teve maturidade para ignorar opiniões contrárias. “Os mais críticos eram os meus professores da época. Diziam que os mortos precisavam de descanso e não deveriam ser incomodados”. Naquela primeira vez, quando saiu do Cemitério de Santo Amaro, os amigos o esperavam na praça. Questionados o porquê de não terem entrado, responderam que tiveram medo de uma reação contrária, de serem apedrejados por supostamente estarem incomodando. “Lembro que perguntei de forma irônica a eles: ‘E que tal morrer por amor à arte?’”, conta o maestro. Pensa igualmente até então.
Preocupado em distanciar-se da conotação religiosa, buscou a explicação filosófica, teoria pela qual transita bem. “Comecei a mostrar que a música serve para homenagear a memória das pessoas queridas, dos que estão no nosso coração. Que, ao invés de entristecer com a memória, podemos sublimar a dor com arte”. Para ele, a arte nesse caso aparece como um elemento de solidariedade, que pode inclusive servir como instrumento para auxiliar na qualidade de vida das pessoas.
Com ou sem incentivo financeiro do governo estadual ou municipal (este ano, ele não teve algum), o maestro Gil Amâncio mantém-se firme, comprometido com aquilo que acredita. Presta homenagem aos mortos, às lembranças do que foram e conforta aqueles que choram nos cemitérios do Recife, Região Metropolitana. Já se foram 25 anos, mas só na década de 1990, o projeto dos cemitérios começou a ter projeção. Foi quando contou com a adesão do escritor, poeta, cineasta e professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Jomard Muniz de Brito. Givanildo encontrou-se com Jomard na extinta Livro 7 e disse: “Se você não for, vou dizer que não é mais contemporâneo e que sou mais vanguardista que você”.
A presença de Jomard fez com que o projeto “Concerto para vida” virasse notícia. A partir do Recife, experimentou-se em outros estados (de paletó preto e gravata formal, Gil tocou Garota de Ipanema diante do túmulo de Tom Jobim, no Rio de Janeiro) e chegou em Lisboa, Portugal, numa época em ele que fazia mestrado naquele país. Lá, fez questão de prestar homenagem aos coveiros do Cemitério Alto São João. “Foi um momento marcante. Muitos deles choraram e disseram que nunca tinham feito nada para eles”, conta Gil Amâncio. Em funerais particulares, faz uma participação original pela dinâmica emotiva que promove.
Filho de Zé Amâncio do Coco, músico tradicional nascido em Aliança (PE), e da professora Maria da Penha, irmão mais velho do maestro Francisco Amâncio, conhecido como o maestro Forró, Givanildo Amâncio, o maestro dos mortos, estará hoje no Cemitério de Santo Amaro de novo. Desta vez será acompanhado pelo canto lírico da portuguesa Emília Urwintea, em apresentações promovidas perto da Capela do Cemitério, em sessões às 10h, às 12h e às 16h. “O que eu quero é promover a naturalidade da morte, fazer com que as pessoas percebam que não é preciso sofrer para viver com a morte de alguém, porque faz parte do curso natural da vida. Tudo volta para Deus”.