15.11

Enquanto estudiosos insistem em que o humanismo está no fim, há apostas no poder que tem a bondade.

Luce Pereira (texto)
Greg (arte)

Logo no começo de 2017, o pensador, professor e cientista político Achille Mbembe alertava, em longo artigo reproduzido por inúmeros meios de comunicação, planeta afora, que “a era do humanismo está terminando”, seria a decretação do triunfo do dinheiro e da tecnologia sobre os ideais da Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade. Assim, desistimos de pensar no coletivo e passamos a viver como ilhas, cultuando uma individualidade que só leva a imaginar o mundo como uma imensa selva onde cada um vive apenas para “vencer o jogo”. Custe o que custar. E num cenário assim, todo dia é dia de matar um pouco mais aquilo que, entre outras coisas, sempre nos diferenciou dos bichos – a gentileza, poderosíssima arma contra a arrogância e a violência. Na última sexta-feira, dia mundial dela, lá estávamos nós pedindo, com ações pouco arrojadas, que antes de contribuir atirando a última pá de cal o cidadão pense em quanto a vida é sem graça sem um bom dia, um sorriso espontâneo no elevador, a oferta de um lugar no transporte público para quem tem menos saúde ou muito mais idade; que reflita sobre o quanto desarma qualquer um a disposição para o diálogo, a simpatia, o entendimento, todos eles com raízes fincadas na gentileza. Ou o senhor, a senhora, nunca experimentou a alegria de vencer caras feias, má vontade, com um gesto conciliador? Sim, porque gentileza também é isso, conciliação, empatia.
Apesar das teorias de decréscimo na qualidade das relações humanas, inclusive a que foi expressa por Mbembe, deveríamos lembrar que o isolamento a que parecemos condenados pode ser revertido com os gestos mais simples ensinados pela própria natureza e depois pelos níveis de educação no ambiente familiar. O que não significa que nos vejamos obrigados a gestos e comportamentos nada naturais ou a convivências forçadas, porque, afinal, gentileza não combina com atitudes que não nasçam da espontaneidade. É preciso disposição íntima para arrancar sorrisos e reações amistosas, encurtar distâncias, quebrar barreiras e até paradigmas, mas reflexões sobre esta necessidade ajudam a torná-la uma prática. Ponderações do tipo ninguém é suficientemente fechado ou indiferente que resista a um sinal de delicadeza conseguem milagres e o mais provável é que, dependendo da forma e do grau de insistência, até um “iceberg” derreta. Trata-se de um caminho que exige fé e tenacidade.
Mas a quem interessa a gentileza? A quem imagina um cotidiano menos doente, com pessoas menos obcecadas por vencer o tal jogo, que no final das contas só redunda em imensa solidão. Interessa a quem deseja um mundo com menos competição por objetos e mais busca por boas vivências e experiências. Embora o afã por dinheiro só cresça e as leis de mercado pareçam prevalecer sobre as naturais, a salvação sempre estará no caminho em direção ao outro. E nesta aposta, a última sexta-feira foi pontuada por apelos para que ninguém saia de casa sem coragem para desejar bom dia, ajudar alguém em dificuldade, ceder o lugar a necessitados, ser bacana no trânsito. Notadamente é um apelo à sobrevivência do que de fato vale a pena, somente considerando o que disse o ensaísta francês Joseph Joubert sobre o assunto: “Quem não é suficientemente gentil não é suficientemente humano”.
Gentileza não se ensina, claro, nem pode ter sua importância entendida em apenas um dia dedicado a ela. Como uma senhora consciente do poder de cura que tem, exige certa coragem dos seguidores para nunca desistir diante de eventual falta de resposta. Não é porque alguém não reage a um cumprimento ou gesto de simpatia/solidariedade, que não se deva insistir o necessário. Como numa guerra, o sucesso depende de obstinação – e nós temos uma pela frente, contra a ideia de que podemos deixar de ser gente e virar máquinas a serviço exclusivamente do dinheiro.