Escolha uma Página

Espetáculo de teatro de vara com temática e personagens africanos é realizado por alunos de escola de Olinda. Um exemplo a ser seguido - Foto: Karina Morais/DP

Espetáculo de teatro de vara com temática e personagens africanos é realizado por alunos de escola de Olinda. Um exemplo a ser seguido – Foto: Karina Morais/DP

A cultura afro que nos ensina a ser brasileiros

Projetos e iniciativas voltadas para estudantes dão novo significado à cultura negra no estado

O cabelo crespo e volumoso é exibido com orgulho pela estudante Leopoldina Ribeiro, 18 anos. Até três anos atrás, ela não conhecia a textura do próprio cabelo. Desde pequena, a mãe aplicava produtos químicos nos fios para deixá-los lisos. A química capilar que fazia os olhos arder era colocada periodicamente para que a raiz sequer chegasse a aparecer. Foi assim da infância até 2013, quando Leopoldina – ou Dina, como gosta de ser chamada – participou de um debate sobre cultura africana na escola. Começou a estudar o assunto e decidiu fazer a transição capilar.

O processo para se livrar do alisamento durou dois anos. De 2013 a 2015, Dina resistiu aos comentários dos que tentavam fazê-la desistir. “Brinco que quando alguém nasce na minha família ganha um pacote de fraldas junto com um pote de alisante. Eu, minhas primas e tias tinham os cabelos alisados e dependentes de química”, conta. “Nunca tive dificuldades de me identificar negra, mas fui criada assim. Decidi romper com isso e levar minha afirmação afro também para o cabelo”, completa.

Para incentivar outras estudantes da Escola de Referência em Ensino Médio Beberibe a assumirem os fios cacheados e crespos, Dina criou a oficina Cachos Empoderados. A ideia foi apoiada pela instituição de ensino, que ofereceu suporte para que a aluna tocasse o projeto. “São palestras explicando o que é a transição capilar, os tipos de cabelo e os cuidados. Além disso, mostramos tipos de penteados e acessórios para que todas possam se sentir bem e bonitas”, explica a estudante.

Desde que revelou os cachos, Dina se tornou inspiração para as colegas de classe. “Minhas amigas me perguntam muito sobre o processo e já inspirei colegas e primas a fazerem o mesmo. Recebi muito apoio quando fiz minha transição, então também ajudo quem precisa”, diz. O apoio da escola ao “abraçar” o tema foi fundamental, revela a estudante que quer ser designer de interiores. “Temos projetos interdisciplinares que resgatam a identidade negra. Os temas são tratados com reflexões e debates, e os alunos são muito participativos”, afirma a professora de educação física da escola, Ediane Ramos.

Na Rede Municipal…

Quando ouvia o nome África, a estudante Rayssa Oliveira, de 11 anos, pensava em um país miserável, com pessoas doentes e com fome. As associações que a menina fazia à palavra vinham do que ela assistia na TV e via em filmes.

“Sempre achei que África era um país. Hoje, sei que é um continente composto por 54 países e que tem riquezas e belezas”, diz, como se estivesse dando uma aula. A concepção da estudante sobre a história africana só mudou depois que ela começou a participar do projeto Kanteatro, da Escola Municipal Isaac Pereira, em Olinda.

Durante as aulas que exaltavam a literatura, música e arte africana, a menina começou a exibir os cabelo cacheado. “Eu tinha muita vergonha do meu cabelo porque, na escola e na rua, diziam que ele era ‘ruim’. Vi que minha professora tinha o cabelo como o meu, e ela é tão linda. Agora, quando alguém tenta me ofender respondo que ter este cabelo é para pessoas especiais como eu e como minha professora Mazarelo”, conta.

“É recorrente perceber em sala de aula que a memória dos estudantes relacionadas à África sempre remetem a questões negativas, como a escravidão. O que fazemos é resgatar memórias para que eles se reconheçam”, afirma a professora Maria Mazarelo, que montou um espetáculo de teatro de vara com temática e personagens africanos em parceria com o Centro Cultural Nação Ogan. A peça é encenada pelos estudantes da escola municipal.

Na Universidade…

O tema “História e Cultura Afro-brasileira e Africana” é obrigatório nos currículos escolares de todas as unidades de ensino ensino fundamental e médio do país – públicas e privadas – desde 2003, quando foi sancionada a lei federal 10.639. Desde então, as instituições de ensino passaram a ser obrigadas a contemplar o ensino da cultura africana e da história afro-brasileira em seus currículos.

A temática muitas vezes aparece apenas no mês de novembro, quando é comemorado o Dia da Consciência Negra. Nos demais meses, porém, o assunto volta a ser silenciado. Era assim quando a universitária Eduarda Nunes, 19, estudava no ensino fundamental e médio. Ela só passou a tratar o tema com professores e colegas quando chegou à graduação. Aluna do sexto período de jornalismo na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), ela faz parte do Coletivo Afronte, que discute temas relacionados à cultura negra na instituições de ensino superior.

“Percebo que, na minha vida escolar, negligenciaram todo o capital cultural negro. Quem quer se identificado apenas como escravo?”, questiona. Na universidade, porém, ela encontrou um ambiente muito mais aberto a discussões relacionadas à identidade negra. “No entanto, preciso reconhecer que essa é a realidade que vivo em um curso de humanas. Nos centros de saúde e exatas, principalmente, nos de ciências naturais, ainda existe muita resistência para abordar esses temas”, pondera.

[ Para vivenciar

PARA VISITAR…

Museu da Abolição

Endereço: Rua Benfica, 1150, Madalena, Recife
Telefone: (81) 3228-3248
E-mail: mab@museus.gov.br
Entrada gratuita

Núcleo da Cultura Afrobrasileira

Endereço: Pátio de São Pedro, 34, São José, Recife
Telefones: 3355-3199 / 3355-3100
E-mail: nucleodacultafro@gmail.com

Núcleo de Estudos e Pesquisas Sobre Etnicidade da UFPE

Departamento de Ciências Sociais
Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Telefone: (81) 2126-8286
E-mail: nepe@ufpe.br

PARA PARTICIPAR…

Web Conferência com a jornalista Rita Vasconcelos (Fiocruz-PE)

Tema: Religiões de Matrizes Africanas, a Intolerância Religiosa e o Racismo
Quando: amanhã, 22 de novembro
Horário: das 14h às 15h
Pelo site: www.cpqam.fiocruz.br

Roda de Diálogo sobre Identidade, Resistência e Tradição: A Contribuição das Mulheres de Terreiro para a Sociedade

Quando: quarta-feira, 23 de novembro
Horário: 14h às 16h
Local: Auditório do Conselho Estadual da Mulher – CEDIM
(Avenida Alfredo Lisboa, 188, Bairro do Recife)

Povo do Axé em Defesa da Liberdade Religiosa

Quando: quinta-feira, 24 de novembro
Horário: das 9h às 12h
Endereço: Auditório da Prefeitura de Jaboatão (Rua Doutor Fábio Maranhão, Prazeres, Jaboatão)

Eduarda Nunes integra coletivo desde que despertou para o tema já na universidade. - Foto: Karina Morais/DP

Eduarda Nunes integra coletivo desde que despertou para o tema já na universidade. – Foto: Karina Morais/DP

[ Consciência negra
Consequências da lei federal 10.639/2003:
  • Torna obrigatório o tema “História e Cultura Afrobrasileira e Africana” no currículo escolar
  • As instituições de ensino brasileiras passaram a ter de implementar o ensino e da história afro-brasileira nas áreas social, econômica e política
  • A lei aponta que o conteúdo deve ser ministrado em aulas de história e, também, em disciplinas como artes, literatura e música
  • A obrigatoriedade vale para todas as escolas de ensino fundamental e médio das redes pública e privada
  • Para se adequar à lei, os professores devem encontrar elaborar aulas e projetos que contemplem os conteúdos exigidos
  • Os gestores das escolas devem incentivar professores, funcionários e pais a discutir o tema
  • Os pais podem exigir o cumprimento da lei participando de reunições do Conselho Escolar

Já Rayssa Oliveira, descobriu os valores culturais africanos a partir da professora - Foto: Karina Morais/DP

Já Rayssa Oliveira, descobriu os valores culturais africanos a partir da professora – Foto: Karina Morais/DP