Quando a oportunidade se faz artigo de luxo, obrigação de vida é não deixá-la partir. Nos rincões das comunidades mais carentes do Recife, onde a morte é rotina e a criminalidade banal, é muitas vezes o esporte que se apresenta como opção de fuga ao destino comum. Torna-se uma ponte para escapar da violência, ganhar disciplina e, sobretudo, sonhar com dias melhores. Chance rara para quem convive com a pobreza e tem à espreita diariamente um vilão: as drogas. Superesportes apresenta a reportagem Esporte, modalidade esperança. Entrevista com gestores, teóricos, esportistas. E o principal: histórias. De quem tem na bola de vôlei o escudo da vida. No gingado da capoeira, a luz no fim do túnel para emergir do submundo da violência. Histórias de vida que se transformam em um tanto de inspiração e muito de fé em um país onde se mata 30 vezes mais pessoas do que na Europa. Mais do que isso, esperança de sobrevivência no quinto estado do Brasil onde mais se assassina pessoas entre 15 e 29 anos.

Por Daniel Leal
daniel.leal@diariodepernambuco.com.br

Promessas pernambucanas, os irmãos Lenílton e Lucélio, de 15 e 14 anos, driblam o medo da violência com uma rotina de treinos que respeita os horários dos estudos

Os irmãos já alcançam resultados expressivos no vôlei de praia com suas respectivas parcerias

Na comunidade do Bode, bairro do Pina, Zona Sul do Recife, luxo mesmo é ter uma cama para dormir e fazer três refeições por dia. Graças à mãe – mãe solteira, diga-se -, Lenílton e Lucélio Gomes da Silva, irmãos de 15 e 14 anos, respectivamente, gozam desse privilégio. Vivem, porém, longe de estarem satisfeitos. Afinal, diariamente, encontram-se com o inferno e o paraíso. São meninos prodígios do vôlei de praia pernambucano. Do esporte, paixão e esperança. Por outro lado, são vizinhos do medo. “Um dia desses mataram uma pessoa na porta da minha casa”, lamenta Lenílton.

Os dois jovens esportistas são filhos de um pai (para eles ausente) que colocou no mundo 21 crianças, com quatro mães distintas. Um dos irmãos está morto, alguns presos e outros que se prefere distância porque “mexem com coisa errada”, reforça a mãe dos meninos, a auxiliar de serviços gerais Rosemary Gomes da Silva. Ela mantém consigo os dois “meninos do vôlei”, conforme se refere vizinhos, além de outros dois – um deles adotado. “Peguei para criar porque a mãe dele maltratava. Batia muito, abandonou”, afirma Rosemary, que ganha um salário mínimo contado para comida e o aluguel de R$ 200.

“A gente morava na palafita aqui ao lado. Mas, numa noite, há uns dez anos, a maré subiu demais e a palafita caiu com a gente dentro. Só deu para salvar as crianças e os documentos”, recorda Rosemary. Primos e a avó dos jovens atletas seguem morando nas casas suspensas ao manguezal. Em meio à falta de saneamento básico, ratos e insetos. Uma realidade dura.

Lucélio e Lenílton treinam de segunda a sexta-feira. Às vezes, em dois expedientes. Revezam o vôlei com os estudos, mas também com ensaios de teatro para apresentação no Natal e de dança para o São João do ano que vem. “Saio para trabalhar e sempre me comunico com eles para não deixá-los na rua, porque lá não tem nada o que dar. Se tiver treino ou ensaio sai, senão fica em casa. Peço muito a eles por causa da violência que tem aqui. Prefiro evitar o máximo que puder de eles estarem no meio da rua”, disse Rosemary.

No país dos índices alarmantes de criminalidade e pobreza, o caminho do esporte acaba se tornando um pouco de refúgio e muito de sonho. De acordo com o último levantamento divulgado pelo Atlas da Violência, lançado anualmente, baseado em dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), o Brasil alcançou, em 2016, a marca histórica de 62.517 homicídios – mais de 30 por 100 mil habitantes.

No Recife, o índice sobe para 53,1 mortes por 100 mil. “Já perdi muitos amigos. Outros, eu fico triste por não poder conviver com eles porque escolheram um caminho que só tem dois destinos: a morte ou a prisão”, disse Lenílton. “O pessoal oferece droga, oferece tudo aqui dentro (da comunidade), mas não vale a pena. O sonho da gente é tirar nossa mãe daqui, mas jogando vôlei”, completa Lucélio.

 

OS FRUTOS

O caminho trilhado pelos irmãos da comunidade do Bode se deve à educação da mãe, mas muito também pelas ações de políticas públicas. Na Escola Municipal Oswaldo Lima Filho, no Pina, Lucélio e Lenílton foram apresentados ao vôlei através do programa Recife Esportes de Rendimento, da Prefeitura do Recife. Não só se apaixonaram. Destacaram-se. Mesmo com o pouco tempo de treinos, os resultados já apareceram.

Junto ao parceiro Breno, Lucélio conquistou a primeira colocação nas duas etapas do Circuito Pernambucano de Vôlei de Praia, categoria Sub-15. A primeira aconteceu em março, no Centro Esportivo Santos Dumont, e a segunda foi no mês passado, em Olinda. A dupla lidera o ranking pernambucano da categoria. Lenílton não fica atrás e, junto com o parceiro Erick, obteve a quinta colocação na 3ª etapa da Copa Nordeste de Vôlei de Praia.

“A gente sempre procura conversar com os meninos, principalmente quando viaja e tem mais tempo. Já fomos a algumas competições com eles e passamos a entender melhor o dia a dia e realidade de cada um. A gente vai criando uma certa proximidade e entendimento melhor das particularidades de cada um. São dois meninos promissores e que estão trilhando um caminho de sucesso”, afirmou o técnico Caio Lopes, professor do projeto municipal.

Estar na escola é um critério para participar das aulas na praia às quartas e sextas-feiras. “Nota não chega a ser um critério exclusão, mas a gente acompanha”, garante Caio. “O grande propósito aqui, apesar de ser um programa de rendimento, com cobrança e disciplina maior, é que não trabalhamos somente com quem vai ser campeão olímpico. Não tem essa de só vai ficar quem é o melhor, o mais alto. A ideia é entenderem o perfil de alguém que vai chegar ao alto nível e entenderem sua meta de evolução com disciplina, comprometimento”, acrescentou.

Há mais de dez anos trabalhando com crianças em situação de vulnerabilidade social, Caio conseguiu passar a mensagem aos alunos a ponto de se tornar inspiração. “Meu maior sonho é tirar minha mãe da comunidade para outra melhor. Se não for jogando vôlei, quero ser técnico como Caio, que não conseguiu ser atleta, mas é um ótimo treinador”, pontuou Lucélio.

• Dos 42.485 homicídios registrados em Pernambuco entre 2006 e 2016, 24.181 (mais de a metade) foi de jovens entre 15 e 29 anos.

• A taxa de homicídio por grupo de 100 mil em Pernambuco sobe para 200,5 por 100 mil quando se especifica jovens apenas do sexo masculino. A taxa nacional nesse quesito é de 112,6.

• O número de jovens assassinados vinha diminuindo em Pernambuco entre 2009 e 2013. Voltou a crescer em 2014. Entre 2015 e 2016, cresceu 17,2%.

• De acordo com o Atlas da Violência de 2018, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), o número de 62.517 assassinatos cometidos no país em 2016 coloca o Brasil em um patamar 30 vezes maior do que o da Europa.

• Pernambuco foi um dos sete estados que tiveram queda no índice de homicídio da década analisada: -10,2% (entre 2006 e 2016).

• A Secretaria de Defesa Social de Pernambuco salienta que os números seguem em curva decrescente, tendo em vista o primeiro quadrimestre deste ano (1.590 homicídios) em comparação com o mesmo período do ano passado (2.038).

Fontes: Atlas da Violência 2018 com dados do IBGE/Diretoria de Pesquisas. Coordenação de População e Indicadores Sociais. Gerência de Estudos e Análises da Dinâmica Demográfica e MS/SVS/CGIAE – Sistema de Informações sobre Mortalidade – SIM

Projeto na UFPE usa a capoeira como instrumento contra a vulnerabilidade social

Professor Henrique Gerson Kohl coordena o projeto, que atende cerca de 40 pessoas

Referência no estado em educação tendo a capoeira como objeto de estudo, o professor Henrique Gerson Kohl, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), acredita que muito se pode mudar da realidade difícil de jovens em situação de vulnerabilidade social através do esporte e políticas públicas mais eficientes. Parte de uma série de ações de extensão realizadas pela academia, o docente do departamento de Educação Física reconhece no desporto“um espaço de empoderamento, de relevância social em determinado bairro, rua, comunidade, ou centro social”. E, sobretudo, um possível agente de transformação.

Gaúcho criado no Recife desde os 10 anos de idade, Kohl encontrou na capoeira, há cerca de 25 anos, seu esporte favorito e espelho do caminho de vida que gostaria de trilhar. Formou-se então em Educação Física, fez mestrado e doutorado na UFPE. Hoje, contramestre na luta brasileira, o professor coordena um projeto em que atende uma média de 40 pessoas na universidade. “E atinge outros setores diretamente ou indiretamente com grupos de pesquisa que presta serviço para diferentes projetos e ações sociais”, afirma.

Acostumado a transitar por diferentes figurações sociais graças ao relacionamento com o esporte, Kohl aprendeu na vivência a importância e o sentido que a prática esportiva pode oferecer aos setores da sociedade mais vulneráveis. “Penso que um jovem nessa situação significa um ser humano cuja política de estado não conseguiu dar conta de demanda historicamente acumuladas enquanto direito. Dentre elas, inclusive, o esporte e o lazer, que são direitos constitucionais”, analisa.

“No caso desse jovem em situação de vulnerabilidade, significa que pessoas não tiveram oportunidades a situações que pudessem favorecê-las. A gente nunca pode ter certeza para não dar um tom determinista. Mas temos que ter a possibilidade de transformação social. E, sem dúvida, o esporte é um meio para tal”, ressaltou o professor. “São jovens que muitas vezes não chegou a eles a política de estado. Não estou me restringindo a governo algum, porque seria algo mais romantizado. Trata-se de uma demanda historicamente acumulada. Em muitas comunidades em situação de risco aqui no nosso estado, percebemos histórias de vida extraordinárias e de jovens com muito potencial, mas sem oportunidade”, acrescentou.

Nas universidades, existe o que se chama de tríade do ensino superior, que é composto pelo conjunto ensino, pesquisa e extensão. Este último é o que conecta a universidade à prestação de serviço gratuito ao público. Isso é uma essência que o professor Henrique Gerson Kohl não deixa perder. “Não há uma verticalização da universidade com as práticas sociais, mas uma relação de escambo, de troca horizontal. Não é que a universidade leve algo para, ela faz uma relação constante de troca através da sua tríade. E isso tentamos manter ao máximo”, pontuou.

No Brasil 206 milhões de pessoas

55 milhões (30%) vivem em situação de pobreza
18 milhões vivem em situação de extrema pobreza
17,3 milhões de crianças (0 a 14 anos) vivem em situação domiciliar de pobreza
4 milhões de crianças vivem em favelas
15 milhões (60%) da população do Nordeste vivem em situação de pobreza (pior índice do país)

Em Pernambuco 1,2 milhão de crianças (0 a 14 anos) vivem em situação domiciliar de pobreza

Pobreza

Renda familiar equivalente de R$ 387,07 por mês ou 5,5 dólares por dia – valor adotado pelo Banco Mundial

“Cenário da Infância e Adolescência no Brasil” traz um compilado de dados de fontes públicas, como o IBGE e o MEC, que retratam a situação da infância brasileira.

 

Fonte: Relatório Fundação Abrinq 2018: “Cenário da Infância e da Adolescência no Brasil”

Com 9 anos, Rodrigo pegou pela primeira vez na vida em uma arma. Léo, já adolescente, conheceu as drogas e os furtos. Os dois têm histórias que encontraram o ponto de virada na capoeira. Mais especificamente na mestra Shirley Souza Braz, a Shirley Guerreira, fundadora do Grupo de Capoeira Mãe Arte, com sede no bairro de Santo Amaro, historicamente um dos mais violentos do Recife. O segundo dia da série de reportagem Esporte, modalidade esperança mostra como a luta e a professora se transformaram na luz no fim do túnel e na razão do resgate para os dois jovens, afundados nas mais diversas drogas.

Foi depois de conhecerem o esporte que Léo e Rodrigo conseguiram se livrar da criminalidade e da falta de perspectiva de vida

Shirley Guerreira (c) é fundadora do Grupo de Capoeira Mãe Arte, localizado em Santo Amaro

Aos 8 anos, Leonardo Alexandre Barbosa, o Léo, 30 anos, começou a praticar capoeira. Conheceu na escola. O esporte tornou-se meio de disciplina, paixão e logo de fuga à realidade. “Minha infância foi difícil. Cresci numa casa de tábua, sem qualquer saneamento básico. Morávamos eu, minha mãe com seis filhos, só eu era filho do meu pai, que era alcoólatra e bebia todos os dias. Minha mãe saía para trabalhar de domingo a domingo para colocar só o almoço em casa. Não tinha café da manhã. Muitas vezes ia dormir sem jantar. Na minha infância, eu vivia mais aqui na casa da mestra (Shirley Guerreira, fundadora do Grupo de Capoeira Mãe Arte) do que em casa. Tinha semana de eu nem pisar em casa”, detalha. “Se não fosse a capoeira, eu acho que estaria morto”, acredita.

No local que hoje virou a sede do Grupo de Capoeira Mãe Arte, Léo tomava café, almoçava, tomava banho e dormia. Os cerca de 40 alunos, entre 6 e 64 anos, nada pagam pelas três aulas semanais. “Cada um dá o que pode. Se puder, dá R$ 4 para ajudar a pagar a água, já está ótimo. Se não der, problema zero”, garante a educadora social e mestra.

Na roda de capoeira, os meninos se reúnem para ouvir e falar sobre o dia. Depois, vão para a luta. Os movimentos são simulações de ataque, defesa e esquiva entre dois capoeiristas. O objetivo do jogo é demonstrar superioridade em quesitos como a força, a habilidade, a autoconfiança e, sobretudo, através do gingado. Shirley orienta os movimentos. É do tipo espontânea. E carinhosa. Fala com os alunos com intimidade de quem conhece a fundo cada história. Dedica-se de corpo e alma à capoeira.

“Pago para dar aula. Desde que me entendo por gente, sou criada aqui e sempre vi a dificuldade que a comunidade tem. A maioria tem situação complicada. Alguns já se envolveram com drogas e já saíram, outros estou ainda tentando tirar. Muitos sofrem problemas familiares, com pais e mães alcoólatras”, lamentou. Shirley já perdeu vários alunos assassinados pelo tráfico.

Outros, ela lutou para resgatar. E venceu. “Um dia, vieram me falar que Léo estava usando drogas. Fui atrás imediatamente. Fiz de tudo para ajudar. Mas ele se envolveu com drogas, as piores: pedra (crack), pó (cocaína), maconha… depois começou a roubar. Pequenos furtos. Foi preso duas vezes, mas nunca deixei de estar ao lado dele”, afirmou Shirley.

“Se não tivesse conhecido a capoeira, não tivesse no meio de pessoas que me apoiavam, que davam amor quando precisava, jamais teria pensamento de sair das drogas e do crime. Quando a pessoa não conhece outra vida, fica naquela até morrer. Mesmo drogado ou na abstinência, você vai ter sempre uma luz no fim do túnel de vontade de voltar a ser o que era antes. Capoeira foi essa luz para mim”, disse Léo, hoje auxiliar de cozinha, empregado, casado, pai e sem usar drogas. “Hoje tenho minha casa toda na cerâmica. Se minha vida melhorar, estraga”, pontuou.

 

MUGANGA

Berimbau, pandeiro e atabaque. Ginga e força. Rodrigo Pereira Nunes, 30 anos, o mestre Muganga, foi aluno da mestra Shirley desde os 7 anos de idade. Dos mais talentosos capoeiristas, habilitado em vários instrumentos musicais da arte, tornou-se um exemplo de superação. “Conheci a capoeira na escola através do Programa Escola Aberta. Achei interessante na escola, me interessei e entrei”, contou. Nunca mais saiu. Mas, tampouco resistiu às tentações do meio de uma comunidade violenta.

“Aqui na minha rua é um ponto de droga. Aqui no Campo do Onze é outro ponto. Quando eu vejo que os meninos estão com muita conversa com traficante, chego e tiro na dura mesmo. Mas eu não estou 24 horas por dia com eles”, lamentou Shirley. “Na escola, um colega levou uma arma e fiz os primeiros roubos. Fui apreendido uma vez”, contou Rodrigo. “Ele se afundou nas drogas mesmo”, lembra a mestra.

“Sempre tive família estruturada, meus pais não mexem com nada de errado. Só eu que pendi para esse lado devido à influência. No meu caso não foi necessidade, foi porque queria estar andando bem, com cordão de prata no pescoço”, revela Rodrigo. “Mas a capoeira nunca apoiou a gente com nenhum tipo de droga, até porque não condiz com a arte. A mestra sempre me aconselhou, correu atrás para me ajudar, continuou tentando e não desistiu. Sou muito grato a ela por tudo. Hoje, posso dizer que a capoeira foi meu resgate. E onde eu chego sou respeitado por ser o mestre Muganga. Divido minha história com os mais jovens e sou muito feliz em poder estar dando essa volta por cima, porque cada dia é uma batalha”, pontuou.

 

Surgida no século 17, capoeira pode ter, segundo estimativas não-oficiais, seis milhões de praticantes

Surgida no século 17, capoeira pode ter, segundo estimativas não-oficiais, seis milhões de praticantes

Desde 2016, o Conselho Nacional do Esporte (CNE), vinculado ao Ministério do Esporte, formalizou a capoeira como esporte. A decisão a tira de um grupo considerado apenas como arte para ser também reconhecida como categoria esportiva. Doutor em Educação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) tendo a capoeira como objeto de estudo, o professor Henrique Gerson Kohl entende que a discussão é ampla.

“O Brasil com toda sua diversidade, dinâmica e contradições, dentre outros aspectos com suas interdependências, faz refletir na capoeira uma não determinação em uma única esfera, mas a deixa transitar, (res)significar, resistir e/ou aderir com diferentes configurações sociais, por isso não cabe um determinismo à capoeira”, explica.

Este ano, O Globo e a revista Superinteressante, que listou os esportes mais populares do país, estimaram que a capoeira tem seis milhões de praticantes. Oficialmente, porém, não há um registro do quantitativo exato de praticantes no país e no mundo. “Não existe censo oficial, mas posso dizer seguramente de maneira empírica reafirmada em visitas, notícias e vídeos, que a capoeira é uma das práticas sociais mais capilarizadas no Brasil e presente de maneira significativa em diferentes áreas do planeta. É uma prática social brasileira que acredito ser a mais capilarizada no mundo tendo em vista inúmeros eventos pelo planeta”, disse Kohl.

De acordo com o site do Itamaraty, 71 países têm rodas de capoeira registradas. Somente na Alemanha são 27. A capoeira surgiu no século 17, praticada por escravos africanos como uma mistura de luta, dança e música. Patrimônio cultural brasileiro desde 2008, reconhecida pela Unesco, em 2014, como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade, a capoeira também se tornou no último mês de outubro Patrimônio Cultural Imaterial de Pernambuco.

Saiba Mais

A capoeira era usada como defesa, tanto por escravos, quanto por libertos, depois do fim da escravidão. Era considerada subversiva e até a década de 1930 foi marginalizada. A prática só foi reconhecida em 1937, depois que Mestre Bimba a apresentou ao então presidente Getúlio Vargas, que a declarou esporte nacional. “Temos correntes de discussão sobre a origem da capoeira, mas a maioria converge para culturas de origens negras. Diferentes povos deram sua contribuição, mas o núcleo afrodescendente deu a maior delas”, destacou o professor Henrique Gerson Kohl.

Medalhista olímpica e atualmente executiva de Esportes da Prefeitura do Recife, Yane Marques tenta dar a outros atletas o que ela teve e soube aproveitar: uma oportunidade

Seguramente, não existe em Pernambuco nenhuma outra personalidade que consiga unir tão bem as faces das políticas públicas com as do esporte como Yane Marques. Única medalhista olímpica individual da história do estado com o bronze conquistado nos Jogos Olímpicos de Londres, em 2012, a hoje ex-atleta de 34 anos deixou de lado o pentatlo moderno desde o ano passado. A transição se deu para assumir dois cargos relevantes. A sertaneja de Afogados da Ingazeira é atualmente a secretária executiva de esportes da Prefeitura da Cidade do Recife (PCR) e, paralelamente, exerce um mandato de quatro anos, até as Olimpíadas de Tóquio, em 2020, como vice-presidente da Comissão de Atletas do Comitê Olímpico do Brasil (COB).

Yane é uma colecionadora de títulos e medalhas. Bicampeã em Jogos Pan-americanos, ouro nos Jogos Mundiais Militares e a mais singular das conquistas: ela foi a primeira latino-americana a ganhar medalha no pentatlo moderno na história dos Jogos Olímpicos. Para chegar tão longe, a pernambucana gosta de bater uma importantes tecla: teve oportunidade. De treinar, de conhecer o esporte, de se destacar. Exercendo cargos técnicos, ela hoje tem como maior objetivo proporcionar o caminho do esporte para os jovens do Recife e defender o esporte olímpico em Brasília.

Entrevista especial do último dia da série de reportagem Esporte, modalidade da esperança, Yane Marques, 34 anos, fez um raio-x da sua gestão de dois anos como secretária de Esportes do Recife. Quais evoluções a esportista conseguiu proporcionar? Qual a importância das políticas públicas para jovens carentes? Como ela enxerga o esporte na função de agente do estado e ciente da função social que o meio pode condicionar?

Imersa também ao dia a dia do COB, ela falou da possibilidade de fusão entre os Ministérios do Esporte e da Educação, tratando o tema com máxima cautela e senso crítico ao rumo que as decisões podem levar os investimentos no esporte. Neste ano, inclusive, o Ministério do Esporte teve o menor orçamento para investimentos dos últimos 14 anos. Os valores a serem investidos despencaram após a realização da Copa do Mundo (2014) e dos Jogos Olímpicos (2016), quando o orçamento para as aplicações somaram R$ 3,6 bilhões. Em 2018, o investimento foi de R$ 700 milhões.

Entrevista   Yane Marques// secretária executiva de Esportes da PCR  

 

“O esporte é uma ferramenta
de construção do cidadão”

Como as políticas públicas contribuem para ajudar, através do esporte, jovens e crianças que estão em situação de vulnerabilidade social?

A política pública direcionada ao esporte é multibenéfica. É uma contribuição que traz muitos benefícios para o atleta, para a família do atleta e para sociedade de maneira geral, porque a pessoa que se envolve com o esporte tem um grande potencial de não estar com doença ou em condição vulnerável, de violência ou de droga. O âmbito do desporto, a vida para quem vive o esporte, ela é diferente. O atleta tem que abrir mão de muitas coisas daqui que quer viver se quer seguir a carreira.

 

Essa política deve pensar além do esporte de alto rendimento, certo?

Falando de política pública, a gente não fala apenas de atleta de alto rendimento. A gente fala de pessoas que vivem o esporte como escape, por qualidade de vida, para ocupar o tempo ocioso com uma prática prazerosa, que ensina, disciplina, educa, doutrina… E precisa-se ter um olhar muito atento e carinhoso. O esporte é uma ferramenta de construção do cidadão. Não tem como não trazer isso que eu penso ou acredito para minha realidade hoje. Tenho uma dívida impagável com o esporte. Todas as horas que eu dedicar para tentar transformar a vida de uma pessoa através do esporte, elas vão ser poucas.

 

Você se vê com o compromisso de criar caminhos para outros jovens trilharem seu exemplo?

Essa é a minha missão aqui: dar oportunidade, encontrar pessoas com potencial que possam viver o que eu vivi. O esporte transformou minha vida para melhor. A minha, da minha família. Você começa a ser uma pessoa diferente, exemplo, modelo para aqueles que estão no seu convívio. O esporte abre portas. Aqui (na PCR), a gente trabalha com todos os segmentos, crianças, jovens, idosos, adolescentes, pessoas com e sem deficiência. E eu já consigo perceber na prática, se fizer um esforço, quantificar como essa nossa contribuição depois desses quase dois anos já mudaram tantas realidades.

 

Você poderia fazer um balanço desses quase dois anos à frente da secretaria executiva de esportes da PCR?

Eu sou suspeita para falar, mas acredito que o balanço é positivo, sim. Quando você pega o papel e dá uma olhada nas coisas que aconteceram, os projetos que tínhamos no papel e viraram realidade… Por exemplo, quando cheguei na Prefeitura, após o convite no final de 2016, cheguei com a bagagem de 20 anos como atleta. Eu falei ao prefeito que estava disposta ao desafio, que após a Olimpíada estava pronta para viver coisas novas, mas não sabia o que estava por vir. Preciso ser franca e dizer que minha experiência com gestão era nível zero. Não sabia nada, absolutamente nada. Mas tinha esse conhecimento técnico e que poderia somar. E aqui estou: fazendo curso avançado de gestão esportiva do COI, pelo COB, tenho lido bastante, me capacitado, e hoje posso ver que, de verdade, quando cheguei aqui, o cenário era diferente para mim e para a pasta.

 

Qual o cenário encontrado?

A gente não tinha jogos escolares… É até delicado falar porque é a mesma gestão. Era Geraldo Júlio (prefeito) e continua sendo Geraldo Júlio. Mas a partir do momento que ele faz essa troca é porque ele estava sentindo que esporte precisava de um up grade, de algo a mais. E a gente chegou com essa meta. E assim temos feito. Jogos Escolares do Recife foi um resgate.

 

Você, então, está satisfeita com o resultado até agora?

Poderia fazer mais? Poderia. Todas as secretariais poderiam fazer mais, mas o recurso é contado. E é aí onde entra boa vontade, criatividade, amor pelo que você está fazendo de ir atrás, de pedir, eu na minha história como atleta sempre muito ranzinza, não gostava de pedir. Lembro de uma competição que cheguei para montar, procurei meu material e vi que tinha esquecido meu chicote. Fiquei p* da vida. ‘Você só faz isso da vida e esquece. Vai entrar sem chicote’. Não peguei emprestado de chatice. Me lasquei porque o cavalo ficou empacando e eu dando com a mão… Porque não queria pedir. E hoje passo o dia de secretaria em secretaria pedindo. E assim as coisas vão acontecendo.

 

Você foi convidada para ser candidata na última eleição? Passa pela sua cabeça?

Fui convidada (pelo PSB) para me candidatar a deputada estadual. Não me sinto pronta. Não vou chegar na Assembleia (Legislativa) para uma votação sobre agrotóxicos, por exemplo, e não saber nada. Minha vida é o esporte. Eu vou ter que ter um compromisso e responsabilidade de legislar sobre todos os temas.

 

Como você tem enxergado essa possibilidade de haver uma fusão entre os Ministério do Esporte e da Educação?

Eu não li ainda a proposta. Não quero ser pessimista. O fato de fundir com outro ministério não significa dizer que vai ser ruim. Se vai fundir e o orçamento vai ser mantido ou vai aumentar, pode ser que não seja tão ruim. Mas para ter uma opinião construída sobre isso é necessário a gente ter acesso ao que de fato vai acontecer.

 

Quais fatores, por exemplo?

Depende da proposta, o que ele quer para esporte? Manter o que está acontecendo e tentar melhorar ou quer tentar colocar uma pessoa que vai terminar tudo que passou e recomeçar do zero? Aí é preocupante. Tem muitos projetos interessantes de esportes de rendimento, esporte educacional… Minha preocupação é que o esporte seja muito direcionado para o esporte de educação apenas. Hoje o ministério repassa verba ao Comitê Olímpico do Brasil, que repassa para as federações que são responsáveis pelo esporte de alto rendimento no país.  E o esporte de rendimento é caro, exige um aporte financeiro muito grande. Mas não acredito que vão atrapalhar o esporte de alto rendimento. Espero que a gente não dê um passo para trás.

 

Ex-pentatleta disse que tem “uma dívida impagável com o esporte.” Foto: Mauricio Ferry/Divulgação 

Fonte: Siga Brasil/Senado Federal

Fonte: PCR