Domingos José Martins, o “noivo” da Revolução

Ele precisou derrubar o governo e os preconceitos da época para poder casar com a mulher que amava

Arte: Greg/DP

O capixaba Domingos Martins e a jovem pernambucana Maria Teodora da Costa eram apaixonadíssimos, mas havia uma grande barreira entre eles. Mesmo sendo branco, educado, de “boa família” e bem sucedido financeiramente, o rapaz nascera no Brasil. Já o pai da moça, o comerciante, capitalista e traficante de escravos Bento da Costa, um dos três homens mais ricos de Pernambuco, era português. E preferia entregá-la a um humilde caixeiro de loja, mas europeu de nascimento, do que a um filho da terra, por mais meritório que fosse. Para os lusos, como ele, os brasileiros eram gente de segunda categoria.

Durante quatro longos anos o casal se vira apenas à distância, durante as cerimônias religiosas, comunicando-se por meio de sinais ou de bilhetinhos levados por escravas. Então, no dia seis de março de 1817, o mundo virara de cabeça para baixo. Rebentara uma grande revolução no Recife; o capitão-mor português, Caetano Pinto, fora deposto e trancafiado no Forte do Brum; os pernambucanos proclamaram uma república e Domingos Martins fora eleito um dos seus cinco governadores provisórios.

Dois dias depois ele já estava batendo à porta de Bento de Costa, para pedir a mão da sua filha…

PLANTANDO IDEIAS

Domingos era um homem bonito, alegre, elegante, e até mesmo um razoável poeta. Nascido num vilarejo chamado Caxangá (hoje, Cachoeiro do Itapemirim), no Espírito Santo, filho de pai militar, ele crescera na Bahia, onde se tornara comerciante, e também vivera alguns anos em Lisboa e em Londres. Já o Recife, para onde viera, em 1813, visando abrir uma filial de sua empresa, era uma cidade grande e movimentada. Lá viviam de trinta a quarenta mil almas, divididas em três bairros: o antigo Recife, do porto e dos sobrados onde moravam os comerciantes portugueses; Santo Antônio, onde ficavam os prédios públicos e os brasileiros pobres e remediados; além da nova Boa Vista, de ruas largas e belas residências. E o capixaba, que gostava de rodar pelo mundo afora, findara se instalando lá, definitivamente, por dois motivos: porque conhecera Maria Teodora e porque descobrira Pernambuco.

Ora, além de rica, essa capitania possuía a elite intelectualmente mais preparada do Brasil, formada pelo Seminário de Olinda; e, além disso, orgulhosa, que não abaixava a cabeça para os estrangeiros desde os tempos da invasão holandesa. Afora uma massa de pobres que, devido aos altos impostos, o recrutamento forçado e o alto custo dos alimentos, odiavam os portugueses. Era, enfim, o campo perfeito para o cultivo das suas ideias democráticas e libertárias.

O capixaba não perdera tempo, tornando-se rapidamente benquisto e conhecido. Ajudava quem pedia. Promovia muitas festas no sobrado que alugara no Recife e no Engenho Irapama, arrendado no Cabo. E fundara a loja maçônica “Pernambuco do Ocidente”, onde, em segredo, com seus irmãos nessa ordem, planejava a revolução. Que, em 1817, já tinha até data para rebentar.

O INESPERADO

No início daquele ano, Domingos viajara para Salvador e para o Rio de Janeiro, em companhia do seu xará, o capitão Domingos Teotônio, e lá acertara tudo com seus confrades maçons. O levante aconteceria simultaneamente naquelas duas cidades e no Recife, as três maiores do País, na Semana Santa, em abril. Entretanto, o comerciante português “Carvalhinho”, um sujeito tão canalha que já levara várias surras, descobrira a trama, em Pernambuco, e a denunciara ao governador Caetano Pinto Montenegro. Que, no dia seis de março, ordenara a prisão dos líderes civis e militares do movimento.

Então, o inesperado entrara em cena.

Os civis, inclusive Domingos, foram facilmente detidos. Mas, quando o brigadeiro português Manoel Barbosa, comandante no Regimento de Artilharia, dera ordem de prisão ao capitão José de Barros Lima, apelidado de “Leão Coroado” o caldo entornara. Em vez de se render, o Leão sacara a espada e o matara. E a rebelião começara no quartel daquela tropa, logo recebendo apoio do povo pobre do Recife e rapidamente se estendendo por todo Pernambuco, assim como pela Paraíba e pelo Rio Grande do Norte, nos dias seguintes.

Diante do novo quadro, Bento da Costa avaliou que não seria um bom negócio dizer não ao pretendente da sua filha. E já no dia 14 de março Domingos e Maria Teodora se casavam na capelinha de Nossa Senhora da Conceição, no sítio do pai dela, em Ponte d’Uchôa (hoje, Parque da Jaqueira). Os padres apressaram os trâmites e o governo bancou grandes comemorações públicas no Recife, em Olinda e nas povoações mais próximas, porque muito lhe interessava que o povo também participasse daquele evento.

O casamento mais importante já ocorrido aqui

Aquela união foi triplamente revolucionária. Em primeiro lugar, simbolizou a derrubada do preconceito contra os brasileiros, uma grande vitória nacional. Em segundo, ajudou a melhorar a relação entre os pernambucanos e os portugueses aqui residentes, que brigavam há mais de um século, e, naquele momento, estavam à beira da guerra civil. Por fim, cantada em versos pelos poetas, deu força a uma ideia recente, as uniões com base no amor, pois o costume, até então, era os pais acertarem o futuro dos filhos levando em conta apenas as conveniências sociais e financeiras.

O assunto mais comentado, porém, foi como se apresentaram a noiva e suas damas de honra. Para surpresa geral, elas, em vez de muito emperiquitadas, como então era moda, puseram vestidos simples e cortaram os cabelos bem curtos. Assim, deram uma mostra da sobriedade e do desprendimento típicos do “tempo dos simples cidadãos”, que despontava no Brasil…

As semanas seguintes foram de intensa felicidade para o casal e de grandes avanços em Pernambuco nos campos da economia, da justiça e da segurança pública. Mas, já no dia onze de abril, uma esquadrilha de naus portuguesas bloqueou o porto do Recife, e os problemas começaram. As exportações e as importações — principalmente, de alimentos, que vinham todos de fora — ficaram impedidas; a fome passou a trabalhar contra a República; e, em maio, um grande exército inimigo cruzou o rio São Francisco, vindo da Bahia.

Então, Domingos, sabendo que as tropas pernambucanas, herdadas do antigo regime, eram muito mal armadas e despreparadas, resolveu enfrentar a tropa baiana pessoalmente. Porém, tendo sido sempre comerciante, sem nenhuma experiência militar, deixou a coluna sob seu comando ser surpreendida ao cruzar o riacho Merepe, em Porto de Galinhas, e lá foi aprisionado, no dia 12 de maio de 1817.

No dia 19, o primeiro governo do povo brasileiro livre se dissolvia, no Recife. E, no dia 12 de junho, o capixaba era fuzilado, em Salvador.

Seu último poema, dedicado à Pátria e à Maria Teodora, acaba assim: “Na morte, entre ambas repartido / será de uma o suspiro derradeiro / e da outra há de ser final gemido…”.

Hoje, Domingos Martins é nome de rua, no Recife, e de cidade, no Espírito Santo. E em 2009 foi inscrito no “Livro dos Heróis da Pátria”, através de projeto do deputado federal Maurício Rands.

Pernambuco libertário

Domingos Martins, portanto, veio ao lugar certo para fazer revolução com a qual sonhava. Esta capitania era bem povoada e superava o Rio de Janeiro e a Bahia, em volume de negócios, um ano ou outro. O Seminário de Olinda era o maior centro de estudos do País, educando jovens e difundindo ideias democráticas desde 1800. A elite local orgulhava-se de ter expulsado daqui os holandeses, em 1654, e dois governadores lusos — Jerônimo Furtado, em 1666, e Sebastião de Castro, em 1710. E os pobres odiavam os portugueses, com quem frequentemente brigavam, nas ruas, em arruaças e distúrbios chamados de “mata-marinheiros”.

Moda & revolução

No seu casamento, Maria Teodora e suas damas de honra não se cobriram com penachos, lantejoulas, joias falsas etc., imitando as aristocratas europeias, como era o costume das mulheres ricas nos eventos sociais da época. Tampouco fizeram os tradicionais penteados imensos, chamados de “tapa missa”, presos com pentes de tartaruga, os “trepa-moleques”. Elas puseram vestidos simples, dispensaram as joias e cortaram seus cabelos “à la Tito”, bem curtos, como os cabelos das francesas dos tempos da “Grande Revolução”. As quais, por sua vez, copiaram o estilo das damas austeras da antiga Roma republicana.

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