Esta seria a história de como a Confederação Brasileira de Futebol (CBF), a partir de novembro de 2016, quebrava paradigmas e elegia, pela primeira vez em 30 anos, uma mulher no comando técnico da seleção brasileira feminina. Para contá-la, as entrevistas com Emily Lima tiveram início no começo de agosto de 2017. Conversa atravessada no dia 22 de setembro por uma decisão unilateral, abrupta, de tons machistas. Com menos de um ano no cargo, a treinadora confirmava sua saída do time nacional. Os rumos da reportagem mudaram. Os novos caminhos reencontraram os antigos. Desde então, esta se tornou a história de como a CBF destituiu Emily Lima, a primeira e única mulher a assumir o comando da seleção brasileira feminina de futebol.

O caso de Emily é o típico paradigma do machismo social, que evita confiar às mulheres os cargos mais elevados de uma organização. Antes fosse um discurso vazio. Não é. Principalmente quando se fala de um ambiente de presença majoritariamente masculina. Tanto que a posição da mulher em cargos elevados, em qualquer segmento da sociedade, é digno de nota. Não há naturalidade. Em qualquer campo.

Antes da demissão de Emily ser anunciada, 24 de 26 atletas assinaram uma carta ao presidente da CBF, Marco Polo Del Nero, solicitando a permanência da comissão técnica. Não foram ouvidas. Com a demissão da treinadora, surgiu um movimento de reação das jogadoras. A atacante Cristiane, a volante Francielle, a meia Rosana, a zagueira Andreia Rosa e a lateral Maurine, todas com dez anos de dedicação ao time nacional, em média, anunciaram a aposentadoria da seleção em protesto contra a CBF.

A saída de Emily foi justificada por uma sequência de seis jogos sem vitórias diante de Japão, Alemanha, Estados Unidos e Austrália. Quando se reuniu com Del Nero, na manhã de uma sexta-feira, e soube da decisão, a treinadora pediu a chance de se posicionar, mostrando números da última comissão que, mesmo com uma sequência de maus resultados, não foi dissolvida. “Ele (Del Nero) disse que não era somente por conta dos resultados, mas não quis me explicar o porquê. Eu só queria saber o que mais eu tinha feito para que pudessem me demitir”, conta.

“Sempre era um ‘não’, nunca um ‘vamos tentar’.”

Os problemas de Emily na CBF não começaram com as derrotas em campo. A técnica revelou, durante as entrevistas, que sugestões de competições nacionais, de seleções estaduais e torneios de base foram negadas. O tempo de treinamento era curto e não existia respaldo para que a comissão técnica pudesse trabalhar.

Sem tanto contato com o presidente, as solicitações da treinadora sempre eram encaminhadas a ele pelo diretor do futebol feminino da entidade, Marco Aurélio Cunha. “A gente tinha uma convivência profissional, mas bastante seca, sem muito diálogo. Sempre era muito difícil (realizar) tudo que eu levava como sugestão. Ele (Marco Aurélio) dizia: ‘É legal, mas não dá para fazer’. Sempre era um ‘não’, nunca um ‘vamos tentar’.”

Mesmo enfrentando barreiras, pequenas mudanças em função das jogadoras aconteceram. Antes de Emily, pedidos ainda mais simples também eram negados. Como, por exemplo, poder escolher o nome e número na camisa. “Vamos dizer que uma jogadora queria ter “AXX”. Eles diziam: ‘Dá para pôr o AX, o AXX não’. Não tinha esse esforço para tentar fazer com que elas se sentissem melhor. Uma coisa tão simples de fazer, para que elas se sentissem valorizadas. Essa preocupação eles não tinham. Era assim e pronto, acabou.”

Foram dez meses com a impressão de que a CBF evoluía. A realidade mostrou que não. 58 dias separaram a primeira e a última conversa desta repórter com Emily Lima sobre a CBF, sua carreira, dificuldades e enfrentamentos enquanto mulher, enquanto líder num ambiente predominantemente masculino. Um fim que ela parecia antever. Ainda no primeiro dos relatos, na noite de uma terça-feira, como quem faz uma previsão, Emily parecia narrar o seu destino.

“Nós abrimos as portas para eles estarem trabalhando no futebol feminino, mas eles fecham para a gente. Falta eles entenderem que a gente também sabe de futebol. Falta ter oportunidade. Falta deixar a gente trabalhar.”

Eles não deixaram.

“Comecei há muito tempo, ainda em 2003, com os meninos. Trabalhava num society. Uma vez eu estava dentro do campo dando aula e chegou um pai para matricular o filho. Ele não tinha me visto, porque os alunos eram muito grandes e eu muito baixinha. Estava na roda para passar as instruções aos jogadores quando o pai entrou e foi ao dono do society pedir informações. O dono mandou me chamar porque eu era quem sabia o quantitativo de alunos por turma. Apareci no alambrado e o pai olhou e fez: ‘É uma menina é? Uma mulher?’. O dono respondeu: ‘Sim, e muito competente por sinal’. O pai só disse: ‘Está bem, obrigado’. Nem esperou o restante das informações. Pegou o filho e foi embora. Acho que aquele foi o momento de quando caiu a ficha. Foi frustrante. É um meio muito machista, não aceitam que uma mulher saiba comandar futebol melhor que um homem.”

Josiana Maria, 39 anos

Ex-técnica do Joias Raras

O desabafo da treinadora Josiana Maria da Silva, 39 anos, relata um caso específico, mas que está longe de ser único. Formada em educação física e perto de concluir uma pós-graduação na área do futebol, a técnica comandou o time Joias Raras, do Recife, numa campanha que garantiu o vice-campeonato do Pernambucano feminino de 2016 e, de quebra, uma vaga para a disputa da Copa do Brasil 2017, que terminou não acontecendo.

Sem apoio da Federação Pernambucana de Futebol (FPF) ou um maior suporte financeiro para arcar com as despesas de inscrição das atletas – medida implantada somente em 2017 para o torneio -, o time foi impedido de disputar o Estadual. Sem competições, acabou desativado. E Josiana relegada ao desemprego no âmbito dos clubes. Atualmente, trabalha como professora de educação física no projeto Segundo Tempo e comanda um society na Abdias de Carvalho.

O TABU DA LIDERANÇA FEMININA

A participação feminina em competições de alto rendimento aumentou consideravelmente ao longo dos últimos anos. Aos poucos, os discursos sociais e biológicos que condenavam a prática esportiva das mulheres foram perdendo força. Hoje, a capacidade atlética não é questionada na mesma intensidade de antes. No que se refere ao comando esportivo, no entanto, o preconceito continua intacto. Os homens mandam. E não aceitam receber ordens de mulheres.

À medida que se avança para o esporte de alto rendimento, a representatividade feminina vai sendo reduzida a números simbólicos. Como acontece no caso do futebol. No Brasil, são os homens que decidem pelo esporte feminino. E não se fala somente da “cartolagem”. O cargo de técnico é, via de regra, sempre ocupado por um homem. Seja em times masculinos ou femininos.

Não que não existam exceções. Há, mas são raríssimas. Facilmente contáveis. No Brasil, são oito. Com base em levantamento realizado pela reportagem por meio do Ranking Nacional de Clubes Femininos 2017, divulgado pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF) ao fim de cada ano, até o mês de julho do ano passado, das 61 equipes profissionais de futebol feminino em atividade no país, somente oito eram comandadas por mulheres. O equivalente a 13% do total.

NOVE?

No estado de Pernambuco, no momento, apenas uma exerce a profissão de técnica: a chilena Macarena Deichler. Ela assumiu o comando do time feminino do Sete de Setembro, que foi reativado somente neste ano, mas está com as atividades paralisadas por falta de calendário e por isso não consta no ranking.

“Jamais o homem vai querer ser mandado por uma mulher, principalmente dentro do campo. Porque, na visão do homem, a mulher nunca vai chegar ao mesmo patamar do homem dentro do futebol.”

Josiana Maria, 39 anos

Ex-técnica do Joias Raras

Mansplaining: só o preconceito explica

Como treinadoras, elas são frequentemente testadas no dia a dia. Questionadas e colocadas a prova sobre seu conhecimento esportivo. Mesmo por homens que não desempenham a mesma função. A prática pode ser explicada pelo termo ‘mansplaining’, junção das palavras “homem”, com “explicar”, do inglês. É quando um homem quer ensinar a uma mulher de forma didática extrema algo que ela já sabe, ou como se ela não pudesse entender sozinha porque, para ele, uma mulher não teria capacidade intelectual para compreender o assunto.

O mansplanning pode ainda ocorrer quando o homem quer demonstrar maior conhecimento que a mulher porque, como homem, seria impossível que ele não soubesse mais do que ela.

“O homem tenta impor uma superioridade em determinado assunto ou campo de atuação só pelo fato de culturalmente aquele campo ser considerado um campo masculino. O que temos por trás disso são questões de poderes e manutenção de território”, explica a doutora em psicologia clínica e especialista em estudos de gênero, Lígia Baruch.

“Eles (os homens) querem colocar a gente à prova. Ver qual seu nível de conversa, o que você sabe sobre futebol. A técnica é o cargo máximo dentro de campo. Jamais o homem vai querer ser mandado por uma mulher, principalmente dentro do campo. Porque na visão do homem a mulher nunca vai chegar ao mesmo patamar dele dentro do futebol. Quando a gente tem uma classe que diz que futebol é coisa para homem, quando a gente vai para esse campo com autonomia, com qualificação, as pessoas se assustam.”

Josiana Maria, 39 anos

Ex-técnica do Joias Raras

Técnicas

  1. Gleide Maria Costa (Botafogo – PB)
  2. Romilda Campos (Comercial – MS)
  3. Socorro Siqueira (Assermurb – AC)
  4. Fernanda Ribeiro (Estrela Real – TO)
  5. Patrícia Gusmão (Grêmio – RS)
  6. Kethleen Najara (Ipatinga – MG)
  7. Vanderleia Silva (Monamy – RN)
  8. Aline da Costa (Pinheirense – PA)

A proporção técnicos x técnicas nas competições femininas

Brasileiro 2017 – Série A1

técnicos

técnicas:

Michele Kanitz – Ferroviária (SP)
Ana Lucia Gonçalves – Ponte Preta (SP)
Patrícia Gusmão – Grêmio (RS)

Brasileiro 2017 – Série A2

técnicos

técnicas:

Gleide Maria Costa – Botafogo (PB)
Eliatriz Almeida – Caucaia (CE)* (Somente a última partida, como interina)
Aline da Costa – Pinheirense (PA)

Campeonato Brasileiro feminino 2016

técnicos

técnica:

Emily Lima pelo São José (SP)

Copa do Brasil 2016

técnicos

técnicas:

Emily Lima – São José (SP)
Macarena Deichler – Vitória (PE)
Kethleen Najara – Ipatinga (MG)
Gleide Maria Costa – Botafogo (PB)
Patrícia Gusmão – Estância Velha (CE)
Romilda Campos – Comercial (MS)

Copa do Mundo Feminina de 2015

técnicos

técnicas:

Silvia Neid (GER) – Alemanha
Vanessa Arauz (EQU) – Equador
Clementine Toure (CIV) – Costa do Marfim
Nuengrutai Srathongvian (THA) – Tailândia
Jill Ellis – USA
Pia Sundhage – Suécia
Martina Voss-Tecklenburg (GER) – Suíça

Resistência, jornada dupla e bolso vazio

Para as mulheres que decidem seguir carreira no futebol, antes mesmo de enfrentar o machismo nas ruas e no meio de trabalho, os problemas costumam começar em sua própria casa. Para a treinadora Gleice Falcão, 37 anos, apoio familiar nunca existiu. “Minha família sempre foi muito resistente, naquela ideia de que futebol não é para mulher, de que mulher tem que se preparar para cuidar da casa, do marido. Fui algo como a ovelha negra da família. Enfrentei minha mãe, que sempre teve um olhar muito preconceituoso. Hoje ela mudou por conta disso”, relembra.

Gleice nunca trabalhou com o futebol fora de Pernambuco. Reúne 15 anos de trabalhos no estado, com passagem pelos três grandes clubes da capital – Náutico, Santa Cruz e Sport – e o Joias Raras, depois assumido por Josiana Maria. Nunca contou com uma estrutura apropriada para treinamentos. Contrato é algo que não existe. Nem salários. Gleice Falcão nunca foi remunerada em nenhum dos quatro clubes que assumiu.

A treinadora sempre precisou recorrer a outros empregos para complementar sua renda mensal. Prática comum no caso das mulheres que assumem o desafio da profissão. “A gente tem que ter jornada dupla para trabalhar com isso, para se manter e fazer o que gosta. Em 2011, eu morava em Igarassu e trabalhava em uma escola em Totó (no Recife). Acordava 3h45 da manhã para dar aula, largava às 16h e ia para o Sport dar o treino na caixa de areia, como chamávamos o espaço onde hoje construíram o society. A gente treinava até 19h. Eu voltava para Igarassu e chegava quase 23h para acordar 3h45 da madrugada de novo para ir trabalhar”, revela.

FORA DA ÁREA

Gleice deixou os gramados ainda no início do ano passado. Hoje trabalha como professora de educação física em uma escola municipal e no projeto Segundo Tempo. Ela estava comandando o Náutico por duas temporadas seguidas até o cargo ser repassado a outro treinador.

“Eu não larguei o futebol. O futebol é que me largou. Fui desvinculada no início de 2016, quando teve a mudança da gestão do clube. Saí e fiquei por opção, a princípio, sem trabalhar. Então muitos outros fatores contribuíram para continuar assim. Falta de apoio, de reconhecimento… É muito triste saber que você se dedica tanto, faz algo por amor e não ser reconhecida por isso. Me refiro ao reconhecimento de uma diretoria, da Federação, da mídia”, reclama.

Realidade diferente, mas nem tanto

“Meu irmão saiu da escola e sempre quis estudar para ser técnico de futebol, no Instituto Nacional de Futebol no Chile. Eu estava indecisa sobre o que fazer. Meus pais me incentivaram, diziam que ainda não têm muitas mulheres no futebol feminino do Chile, que eu poderia ser pioneira. Aí me interessei. Entrei com meu irmão mais novo e descobri minha vocação.”

Macarena Deichler, 31 anos

Técnica do Sete de Setembro feminino

A história de Macarena Deichler, 31 anos, destoa da maioria das mulheres que decidem ser técnicas de futebol no Brasil. Enquanto muitas precisaram deixar a paixão de lado por falta de espaço, a chilena recebeu salários em todos os clubes que passou. Teve apoio familiar e ganhou oportunidades. Mas mesmo na exceção, existe a regra da exclusão. Mesmo sendo uma das poucas com uma formação acadêmica especializada na área, ela encontra dificuldades para se manter em atividade. Para realizar um trabalho consistente.

Macarena começou a sua formação como treinadora ainda no Chile. Em sua graduação, a turma composta por 64 pessoas tinha somente três mulheres. Duas seguiram a carreira. Uma delas era Macarena. A terceira tocou formação como árbitra. Em janeiro de 2014, Deichler chegou ao mercado brasileiro. Veio por conta própria. Desembarcou no Rio de Janeiro com o marido, Javier Diaz, para comandar o Duque Caxiense (da terceira divisão do Rio), trabalhando no sub-15 masculino. Ficou lá por seis meses até assumir o time feminino do Team Chicago Brasil.

Macarena precisou de apenas um convite para deixar o Rio de Janeiro pelo estado de Pernambuco.  O chamado veio de Paulo Roberto Leite Arruda, dono do Vitória de Santo Antão, com quem teve o primeiro contato num seminário de desenvolvimento do futebol feminino na CBF, na capital carioca. “Imagina ser parte de uma das equipes tradicionais do Brasil no futebol feminino. Foi um convite que jamais poderia ter falado que não”, recorda a treinadora.

Foi comandando o Vitória de Santo Antão que Macarena conquistou seu primeiro título profissional como técnica: o hexacampeonato estadual do Tricolor, em 2016. A treinadora optou por deixar o clube no início de 2017 e, em seguida, assumiu o comando do Central, em Caruaru. Veio, então, o golpe. Depois de cerca de um mês em atividade, a equipe foi desativada sob a alegação falta de verba.

Deichler, então, seguiu os passos do marido. Ele assumiu o time masculino do Sete de Setembro enquanto ela ocupou o cargo de técnica do feminino em Garanhuns. Sem calendário no segundo semestre de 2017, a equipe está com as atividades paralisadas.  Deichler trabalha como auxiliar técnica no time masculino. Ela e o marido estiveram sempre juntos. Mas ela não descarta a possibilidade de se distanciar de Javier. “Ele é o primeiro a me incentivar. Se a gente tiver que se separar porque ele vai pegar um clube ou eu em outra cidade, ele não vai me prender”, ressalta.

 

Teto de vidro

A baixa representatividade de mulheres em cargos de comando tem sido explicada por meio da metáfora do “teto de vidro”, expressão que surgiu ainda em 1985 no Wall Street Journal. Uma espécie de barreira artificial e invisível que impede o acesso de mulheres a cargos de liderança e hierarquia superior, considerados inatingíveis para elas.

“Vamos dizer que as mulheres tenham a mesma formação, mesma experiência de carreira. Para ela galgar um cargo máximo, sempre questões que estão ligadas ao biológico vão ser levadas em consideração. Se a mulher pretende ter filho ou se já tem. Ela olha, vê que tem chance, sabe que pode fazer, mas outras coisas vão puxar ela para baixo e não vão deixá-la alcançar isso”, diz Soraya Barreto, pesquisadora em futebol e professora da Universidade Federal de Pernambuco.

“Não existe mercado. Existe muito preconceito e poucas portas que se abrem. A gente enfrenta muita resistência. E sem conquistas não existe reconhecimento. Então a tendência é pessoas que trabalham muito tempo com isso buscarem outro meio ou se afastarem. Basicamente é o que eu estou vivenciando hoje.”

Gleice Falcão, 37 anos

Ex-técnica e hoje professora de educação física

“Futebol feminino tem que ser comandado por mulheres, mas é preciso de oportunidade para se preparar. É importante começar a fomentar o futebol feminino desde criança. Formação do futebol feminino é o que vai dar oportunidade tanto às jogadoras, como técnicas. É o que vai dar mais visibilidade ao futebol feminino.”

Macarena Deichler, 31 anos

Técnica do Sete de Setembro feminino

“O futebol foi historicamente naturalizado como um esporte masculino, de virilidade, de força. Atributos que apesar de não terem gênero, foram atribuídos ao masculino. Então é natural que muitas mulheres tenham se afastado.”

Soraya Barreto

pesquisadora em futebol e professora da Universidade Federal de Pernambuco

A falta de incentivo das instituições

Nas universidades públicas do Brasil, somente o curso de educação física pode encaminhar para o exercício da função de treinadora. Uma formação mais específica, por outro lado, só pode ser encontrada no âmbito privado. Por exemplo, na Confederação Brasileira de Futebol. Em âmbito nacional, os cursos – que se dividem em Licenças A, B e C – ministrados pelo projeto CBF Academy já formaram um total de 50 turmas, com média de 40 alunos cada. Promoveram dois mil treinadores licenciados. Somente 45 eram mulheres. Um equivalente a 2,25% do todo.

Ainda no início de maio de 2017, o Curso de Licença C de treinadores de futebol da CBF, ministrado para estudantes ou formados em Educação Física, chegou em Pernambuco. Foi a primeira vez que o projeto da entidade visitou uma cidade fora do eixo Sul/Sudeste. Com aulas práticas e teóricas, tinha como proposta ensinar sobre gestão escolar de futebol, futebol feminino, metodologia e didática no ensino para crianças e adolescentes. No Recife, teve uma única turma. 32 alunos. Nenhuma mulher.

“Qual a importância que a FPF e a CBF deram por não ter nenhuma mulher nesse curso? Afinal, qual mulher que trabalha com o futebol em Pernambuco hoje em dia teria condições de arcar com mais de R$ 5 mil num curso de formação onde não existe mercado para ela?”, questionou a técnica Gleice Falcão.

A primeira com a licença PRO

Em dezembro de 2017, Débora Ferreira se tornou a primeira mulher no Brasil a conquistar o certificado da Licença PRO, para profissionais das Séries A e B. Começou sua formação na área técnica ainda em 2010, estudando por três anos nos cursos da Real Associação de Futebol dos Países Baixos (KNVB). Em seguida, ingressou na CBF Academy. Desde 2013, no Brasil, foram três módulos concluídos. Durante todo o percurso, somente uma mulher dividiu a sala de aula com Débora.

A treinadora, que era atleta, abandonou as chuteiras e hoje concilia o futebol de alto rendimento trabalhando como auxiliar técnica da seleção brasileira feminina sub-17 e com projetos sociais pela Secretaria de Esportes de São Paulo. Em meio a sua formação, foi convidada pela CBF para ensinar dentro da Licença C. Pela primeira vez, em 2016. Uma segunda aconteceu em julho de 2017. A terceira em setembro.

“O que sempre tive foi dificuldade para me inserir, mas não acho que era por ser mulher. O que acontecia é que, para você fazer estágio, as pessoas não abrem as portas. Percebi que os clubes são amadores, não entendem que o estágio serve para seu crescimento profissional e do clube também.”

Débora Ferreira

auxiliar técnica do sub-17

Afazeres Domésticos

As mulheres dedicam em média o dobro do tempo que dedicam os homens às tarefas da casa

NO BRASIL
Homens – 10 horas
Mulheres – 20,5 horas

EM PERNAMBUCO
Homens – 10,8 horas
Mulheres – 22,6 horas

Cargos de Direção ou Gerência

NO BRASIL

OCUPAÇÃO
Homens – 6,2%
Mulheres – 4,7%

RENDA MÉDIA
Mulheres em cargo de chefia recebem 29% a menos que homens na mesma posição
Homens – R$ 5.222
Mulheres – R$ 3.575

NO NORDESTE

OCUPAÇÃO
Homens – 4,2%
Mulheres – 3,5%

RENDA MÉDIA
Mulheres em cargo de chefia recebem 29% a menos que homens na mesma posição
Homens – R$ 4.035,00
Mulheres – R$ 2.892,00

Fonte: Dados do IBGE, do Censo Demográfico e da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios

O destino quase certo: desistir da carreira

Uma mulher nunca ocupou a área técnica de uma equipe profissional comandando homens em Pernambuco. A nível nacional, é raridade. A primeira no Brasil apareceu há 17 anos, ainda em abril de 2000: Cláudia Malheiro, no comando do Andirá, da cidade de Rio Branco, no Acre, que começou a carreira como auxiliar técnica de Ulisses Torres, no Vasco de Rio Branco (AC). Ex-atleta, naquele ano, Cláudia deixou as quatro linhas por um lugar não tão distante. Deu um passo para fora. Optou por comandar.

“O time era muito ruim. Um verdadeiro saco de pancadas todos os anos, porque não tinha nada. Não tinha campo para treinar, não tinha salário direito. Os jogadores recebiam quando dava, quando o presidente conseguia dinheiro. Quando cheguei, arrumei um patrocínio, conseguimos campo para treinar”, relembra a treinadora.”

Cláudia Malheiro

Ex-técnica

Ela ficou no clube até 2001, quando abandonou o futebol para se dedicar a família. O Andirá passou o ano de 2005 desativado, sem disputar competições, para retornar aos gramados somente no ano seguinte. No comando, Cláudia Malheiro mais uma vez. E foi nesta segunda passagem que a técnica marcou seu nome de vez na história do clube, quando conquistou o inédito vice-campeonato estadual em 2007, a maior conquista do Andirá até então.

O ABANDONO

Ainda que apresentem um bom desempenho sob o comando dessas equipes, a contratação de uma mulher para ocupar o cargo sequer é cogitada pelos clubes brasileiros. São profissionais que tendem a encontrar mais dificuldades para obter credibilidade e a receber menos suporte onde quer que estejam atuando. E não foi diferente com a acreana. A técnica largou a carreira. Sequer seguiu por outros rumos que envolvessem o esporte.

Fora dos gramados, hoje com 51 anos, trabalha como pecuarista com gado de corte. “Parei porque as condições eram muito ruins para a gente trabalhar. São muito ruins, na verdade. Os recursos são mínimos. Para trabalhar em condições precárias, eu não quero”, lamentou. Mas com uma oportunidade de boa estrutura, não pensaria duas vezes. “Eu voltaria sim. Com toda certeza. Se fosse o caso, se me oferecessem boas condições de trabalho, eu voltaria sim.”

Marcos históricos

1987 – A primeira técnica no futebol feminino

Helena Pacheco, primeira a ingressar na Associação Brasileira de Técnicos Profissionais, conquistando no futebol de campo cinco títulos estaduais e quatro nacionais, e no futsal, um título nacional e cinco títulos estaduais. Foi a primeira técnica de Marta em um grande clube, quando comandou o Vasco.

1983 – A primeira mulher a obter o título de técnica

Helena foi a primeira atuar como treinadora, mas antes disso Roseli Cordeiro Filardo foi a primeira mulher a conquistar oficialmente o título de técnica de futebol pela Associação Brasileira de Treinadores de Futebol (ABTF).