Dom Helder, o caroneiro

 

Jaílson da Paz

Diario de Pernambuco

 

Pegar carona não é para qualquer um. Caso queira ter sucesso nessa tarefa, o caroneiro precisa, acima de tudo, ser bem comportado. Do contrário, entrará no rol dos indesejados. Dom Helder Camara, arcebispo de Olinda e Recife entre 1964 e 1985, tinha consciência disso. Tendo optado por não ter carro, ele ficava à mercê de padres e leigos para os compromissos diários que, às vezes, ficavam 50 quilômetros um distante do outro. De tanto receber ajuda, o sacerdote, único brasileiro indicado quatro vezes ao Prêmio Nobel da Paz, criou um manual de sobrevivência. Ou melhor, o decálogo para o bigu.

“Carona aqui é bigu”, justificou o arcebispo. E as oportunidades de bigus surgiam para o “carona universal”, como se intitulava dom Helder, em muitos lugares. Eram tantas que o sacerdote, ao enviar carta a amigos do Rio de Janeiro, em setembro de 1964, disse que “não há quem não me apanhe, quando me vê nas filas ou caminhando pela cidade”. O arcebispo geralmente aceitava os convites e procurava colocar em prática as regras que escreveu. Uma delas, “abrir e fechar suavemente as portas do carro”, agradaria até aos motoristas de hoje.

Embora pareça brincadeira, o decálogo é uma aula de bom senso. Qual o motorista que, na hora de uma tempestade, não gostaria de contar com a ajuda do carona? Dom Helder afirma que, caso chova, o “bigu responde pela visão do motorista”. Então, imagine a cena. As razões para o alívio dos motoristas não ficariam por aí. É que dom Helder afasta da lista do bom bigu aquelas figuras que, além de desfrutar da carona, “dirigem com o motorista”. Ou, sem qualquer cerimônia, sintonizam o rádio do carro na estação que gosta. Para ser correto, ensinava o arcebispo, o carona “aceita o programa de rádio que estiver sendo ouvido”.

A ex-secretária de dom Helder, Maria José Duperron Cavalcanti (Zezita), foi uma das pessoas que mais deu carona ao arcebispo. Ainda hoje, ela ri das histórias em que o arcebispo se envolveu. “As pesssoas não só davam carona como muitas vezes o orientava no caminho certo”. O sacerdote cearense, em seus primeiros anos no Recife, nem sempre sabia para que lado ficavam os bairros.