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LITERATURA | Clarice Freire

Os rabiscos que viraram best-sellers

“Você precisa parar de jogar isso fora!” De passatempo que ia para o lixo, as ilustrações da pernambucana Clarice Freire ganharam o país e inspiram muita gente

Rabiscar ilustrações e poemas sempre foi uma distração prazerosa para a pernambucana Clarice Freire. Um hábito que ela manteve, por exemplo, no período em que trabalhou como redatora numa agência de publicidade no Recife. No final do expediente, todo material produzido como simples passatempo ia para a lata do lixo. Certo dia, uma companheira de trabalho, aguardando a saída de Clarice, vasculhou os descartes. “Você precisa parar de jogar isso fora”, sugeriu Elisa Lacerda, diretora de arte da empresa.

Após o incentivo da colega, Clarice Freire passou a publicar fotos das criações no blog Pó de lua (www.podelua.com), que em 2013 ganhou uma página do Facebook. Naquela época, não existiam tantos autores da chamada “poesia virtual”, e o número de seguidores dela saltou de 7 mil para 1 milhão em questão de meses. No mesmo ano, a Editora Intrínseca procurou a revelação virtual para a elaboração de um livro – que levou o mesmo título da página na internet.

A migração para a mídia impressa não abalou o êxito: foram mais 100 mil exemplares vendidos, número bastante significativo para um país que lê pouco e mais recentemente atravessa uma crise no mercado editorial. A publicação passou semanas no topo em listas feitas por veículos como Veja e IstoÉ para relacionar os livros mais vendidos do país. “Eu tomei um susto. Sinceramente, não esperava que fosse ter tanta repercussão, sobretudo nacional”, diz Clarice, em entrevista por telefone. “Eu era uma mulher jovem daqui do Recife e consegui sentir os efeitos da internet e a capilaridade que ela proporciona. Para ela, não existe tempo ou espaço. Estamos em todos os lugares ao mesmo tempo”, reflete.

Essa característica despretensiosa que rege a trajetória meteórica da escritora também serve para entender sua própria identidade artística. A estética de Clarice Freire é singela e despojada, com uma escrita marcada por frases e poemas breves, irônicos e cativantes. Se trata de uma linguagem híbrida e apropriada para o mundo virtual, que agrada bastante os jovens e provoca alguns questionamentos sobre o que é a literatura.

Apesar da contemporaneidade, esse estilo começou a tomar forma ainda na infância da jovem, sob influência do ambiente criativo onde cresceu, parte no Recife e outra em Gravatá. “Sempre convivi com a literatura. Ariano Suassuna visitava a casa da minha família e, em vez de brinquedos, ele me dava livros de presente”, relembra a artista. Clarice é filha de Wilson Freire, escritor e compositor, grande parceiro de Antônio Carlos Nóbrega, e prima de Marcelino Freire, também escritor. Sua mãe, Lúcia Souza, é desenhista.

“Foi já nessa época que juntei imagem e palavra. Fazia tudo em um caderno, desde os oito anos e meu estilo já se parecia com o que ele é hoje. Sempre foi uma forma de expressão muito orgânica”, explica a artista. “Claro que, com o tempo, fui influenciada pelos clássicos. Alguns foram definitivos, como O sentimento do mundo, de Drummond. Depois comecei a procurar muito pelas mulheres e me apaixonei pela Cecília Meirelles. Também fui influenciada por Clarice Lispector, Manuel Bandeira, Fernando Pessoa, Adriana Falcão, Jostein Gaarder e Manoel Barros.”

No sentido dos traços, Clarice levou um tempo para conseguir descrever qual seria sua inspiração. “Fui tão perguntada que acredito que existe uma influência do Tim Burton. Sempre gostei muito dos filmes dele, da estética, das animações. É algo muito delicado e melancólico, simultaneamente. Tem um humor muito interessante também, então acho que exista alguma influência ali, mas nada tão consciente. Sempre li as pessoas dizendo que meu traço é ‘despretensioso’, e eu acho que é isso mesmo”.

Quando chegou o convite da Intrínseca, Clarice teve de selecionar parte do conteúdo já existente, criar alguns outros e organizá-los em uma narrativa perspicaz que caiu no gosto nacional. “Escolhi as poesias de acordo com o que eu queria falar: as quatro fases da lua. Na lua nova, falo dos sentimentos ocultos, que ninguém externa, enquanto Na lua cheia escrevo sobre um outro espírito, com temáticas mais leves e delicadas”, explica.

A publicação chegou às prateleiras com uma proposta inovadora: como um caderno moleskine, composto por um design charmoso e ilustrações cativantes da pernambucana. A autora brinca com as palavras e com os sentimentos por trás delas, falando de amor, dor, recomeços, liberdade e felicidade. Tudo isso sem soar repetitiva ou até mesmo lógica.

Emannuel Bento
Especial para o Diario
emannuelbento@gmail.com

De 7 mil para 1 milhão de seguidores em meses

Obra foi finalista do Prêmio Jabuti em 2017

Inspiração durante
as muitas noites insones

Estética singela com frases breves, irônicas e cativantes

Em 2016, Clarice Freire lançou Pó de lua nas noites em claro, finalista do Prêmio Jabuti em 2017 na categoria Ilustração. “Esse foi feito do zero. Como eu sempre produzi muito pela madrugada, o pessoal da Intrínseca chamou minha atenção para essa questão insônia. Criei uma personagem que adentra a madrugada em busca de si mesma. As luzes vão se apagando e ela vai caminhando pela cidade, encontrando moradores da noite e outras pessoas que não conseguem dormir”, diz Clarice, que usou dos ponteiros do relógio para balizar a divisão dos capítulos: 0h – As ruas se calam, 1h – A boca se cala, 2h – O pensamento fala, 3h – Os moradores da noite, 4h – Os primeiros raios do Sol, 5h – Sentimentos dourados.

O segundo trabalho também marcou um mergulho na mistura entre prosa e poesia, linguagem que a artista pretende cada vez mais “levar para frente”. Atualmente, está produzindo um projeto ainda “embrionário”. “Estou decidindo quais caminhos vou seguir, mas tenho certeza que vou continuar com prosa e poesia”. Um dos que tiveram o privilégio de conferir um pouco do projeto foi Raimundo Carrero, que definiu a obra como “um romance com personagens cativantes e texto muito forte. “Li algumas páginas deste livro e fiquei encantado”, escreveu ele em artigo de opinião publicado no Diario de Pernambuco em outubro deste ano.

Para Freire, vencer a categoria do Grande Prêmio Orgulho de Pernambuco foi uma “alegria muito grande”. “Principalmente por ter sido aqui da minha terra. Tem um peso muito grande, principalmente pelo voto popular. Isso só me dá vontade de trabalhar mais, produzir mais e continuar fazendo que amo. Acho muito importante essa iniciativa do jornal, por reconhecer personalidades de vários âmbitos e setores. Ficamos todos ali no Gabinete Português de Leitura, juntinhos, nos conhecendo e reconhecendo.”