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MEDICINA E SAÚDE | Dr. Chicão

A medicina como sacerdócio

Francisco Barreto criou no Hospital Agamenon Magalhães a primeira residência médica em serviço público não universitário do Brasil

Três anos depois de terminar a graduação em medicina, Francisco José Trindade Barreto chegou aos Estados Unidos para uma especialização em clínica médica e doenças do fígado na University of Southern California. Logo iniciou os trabalhos de pesquisa e prática nos hospitais John Wesley County e Los Angeles County. Com três artigos publicados em revistas científicas internacionais e admirado pelo então professor Amaury Coutinho, tinha tudo para permanecer em solo estadunidense depois de completar os dois anos e meio de curso. Recebeu convites para permanecer, mas recursou todos. A medicina para ele só teria sentido se fosse exercida no Recife.

Filho de um pianista e de uma funcionária pública, Francisco descobriu a paixão pela medicina aos 11 anos. Na mesma época, também pensou em seguir o caminho do sacerdócio. As duas ideias tinham como princípio a vontade de ajudar o próximo, mas o desejo de ser padre durou apenas uma semana. O de ser médico vingou. Primeiro profissional da área na família, ele ingressou na atual Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) em 1956 e logo caiu nas graças de nomes como Coutinho, Paulo Meireles, Ciro de Andrade Lima e Rostand Paraíso. Dentro da academia, recebeu o apelido que depois seria transformado numa alcunha de sucesso, “Chicão”. A princípio, na verdade, “Chicão Doido”.

É que ele fazia parte dos “cavernosos”, um grupo de amigos que aproveitava o reencontro dos primeiros dias de aula para virar a noite estudando e que transformou, durante anos, o Departamento de Histologia em uma espécie de caverna. “Nós morávamos na faculdade. O professor Hélio Mendonça permitia que a gente dormisse lá, desde que às 7h do dia seguinte não restasse nenhuma aparência de ambiente doméstico. O normal era voltar para casa no sábado, mas às vezes a gente ia na quarta-feira, para tomar banho”, brinca. Dessa época, ficou a lição de responsabilidade, de dever cumprido e a seriedade da vida acadêmica.

Servir à ciência foi um dos motivos pelos quais Chicão decidiu pelos corredores dos hospitais. Contudo, quando a teoria virou prática, a produção científica foi fruto de decepção. As questões éticas implicadas no uso de drogas para realização de testes e a sede de publicação requisitada pelo meio caminhavam no sentido contrário da medicina escolhida por ele. Um dos legados do qual tem mais orgulho nasceu justo de um desses momentos de ruptura. Professor de clínica médica da UFPE entre 1970 e 1980, ele deixou a cátedra federal para fazer história na medicina brasileira com um grupo de amigos, criando a primeira residência médica em serviço público não universitário do Brasil: em clínica médica, no Hospital Agamenon Magalhães (HAM). “Foi a melhor coisa que fiz na vida”, diz.

Chicão trabalhou durante 35 anos para o Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Empregados em Transportes e Cargas. Criou a residência em clínica médica do Real Hospital Português (RHP). Não sabe quando a fama chegou, contudo tem certeza que estava escrita nas estrelas. É o que disseram os estudos em astrologia iniciados por curiosidade: lua na casa 10, profissional destinado a servir ao próximo e com grande reconhecimento profissional. “Uma vez chegou uma mulher ao meu consultório com uma carta psicografada por Chico Xavier, na qual ele me descrevia. Ela estava com ascite (barriga d’água) e eu decidi não puncionar. Ela ficou chateada porque na carta ele descrevia tudo o que eu faria, inclusive isso. Na dúvida, preferi seguir a descrição”, conta.

Aos 77 anos, Chicão trabalha todos os dias em uma jornada de 13 horas. Só quer parar aos 104 anos. O segredo, garante, é manter a cabeça aberta como se fosse um principiante. “O diagnóstico é como se a gente pegasse um trem, no qual a parada final é a doença”, afirma. Não é dado a prêmios, a despeito do legado que construiu, mas ganhar o Orgulho de Pernambuco é como se fosse o reconhecimento à escolha que fez lá atrás, ao deixar os Estados Unidos e voltar ao Recife. “É como se a cidade me desse de volta o reconhecimento à escolha que fiz por ela.”

Alice de Souza
Alice.souza@diariodepernambuco.com.br

Prêmio foi entregue no Gabinete Português de Leitura

“Ganhar o prêmio
é como se a cidade me desse de volta
o reconhecimento
à escolha que fiz
por ela”

Francisco Barreto

Médico

Fascínio pelas letras vem da infância

Chicão, autor de três livros, escreve uma nova obra

O Chicão médico renomado, lembrado pela precisão nos diagnósticos, uma espécie de celebridade e mito da medicina brasileira, esse todo mundo conhece ou já ouviu, pelo menos, falar sobre. Mas nem só de medicina vive o clínico médico. Há outra face de Francisco José Trindade Barreto um pouco mais oculta, contudo não menos célebre. Ainda na infância, Chicão foi agarrado pelo fascínio das letras. Entre um caso quase impossível de solucionar e outro, ele vem dedicando tempo às palavras. Depois de lançar três livros de poesia, Chicão agora está escrevendo uma obra temática para tocar num tema sensível à saúde: doença e destino. Chicão escreveu a Construção do Dia; Liberdade – Vide Versos – Fragmentos, Disfarces, Diagnósticos; e A Casa e o Mundo.

Ocupante da cadeira de número 17 da Academia Pernambucana de Letras (APL) e membro da Sociedade de Escritores Médicos de Pernambuco, Francisco advogará no ensaio o que pratica no consultório. O exercício de auxiliar os doentes a enxergarem a doença como uma oportunidade, não uma fonte de sofrimento. “A doença às vezes define o seu destino e o que você faz pode levá-lo também à doença. Mas ela não deve ser uma condição que torne a pessoa infeliz ou traga vergonha. É possível modular o caminho para vê-la como um desafio que deve ser aceito”, diz. A exemplo, elenca a capacidade do físico teórico e cosmólogo britânico Stephen Hawking de subverter as limitações impostas pela Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA) e do escritor russo Fiódor Dostoiévski em incorporar a epilepsia à sua obra.

Diante do universo médico cada vez mais distinto de quando começou a atuar na profissão, Chicão custa aceitar a transformação da doença no que ele define como “peça de mercado”. “Hoje o paciente vai ao consultório como vai ao shopping. A relação médico-paciente mudou. A medicina virou um mercado que oferece milagres ilusórios, a ausência de dor, o envelhecimento sem perdas. A doença deixou de ser um direito”, lamenta. O livro Doença e destino, onde versa com detalhes sobre a temática, deve ser lançado em 2019.