Atual onda de intolerância e fundamentalismo, protagonizada sobretudo pelas novas denominações pentecostais, abriu fogo contra as religiões afro­brasileiras numa cruzada do “bem” contra o “mal”

Antagonismo que se traduz em violência

Vítimas de um racismo histórico e sistemático, o candomblé e as religiões afro têm suas identidades intimamente ligadas à intolerância. Ao longo de sua história, os cultos afro­brasileiros passaram por diversas fases, convivendo tanto com a proibição completa quanto com períodos de abertura social. Hoje em dia vivemos uma rara época de respeito às liberdades, mas que se faz ameaçada por “uma crescente onda de intolerância, reacionarismo e fundamentalismo”, como foi dito na Carta da Associação Brasileira de História das Religiões em repúdio à intolerância religiosa e demais intolerâncias, lançada em julho de 2015, após o caso da menina Kayllane, que foi atingida por uma pedra ao sair de um terreiro de candomblé no Rio de Janeiro.

Foto: Victor Germano

Foto: Victor Germano

Para Hildo Leal da Rosa, pesquisador do Arquivo Público de Pernambuco e filho de santo da Nação Xambá, o preconceito que permeou a formação dos cultos de matrizes africanas está, hoje, “travestido de outras formas”, que vão muito além da discriminação racial e social. “De certa forma, tornou­-se moda as pessoas, no mínimo, gostarem de ver o candomblé, mas hoje a gente sofre um preconceito acirrado por um determinado grupo de religiosos, sobretudo os evangélicos das novas denominações pentecostais”.

Surgidas a partir da década de 70, as denominações a que Hildo se refere são as chamadas neopentecostais. Com a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) à frente, este segmento evangélico se diz detentor da palavra e da verdade de Deus. Merece registro o fato de que as igrejas neopentecostais sempre assumiram uma posição de antagonismo em relação a outras religiões, em especial as espíritas como o candomblé, a umbanda e o kardecismo.

Com sede no Templo de Salomão, em São Paulo, a Universal é uma das maiores igrejas evangélicas do Brasil, ficando atrás, em termos de número de seguidores, apenas das Assembleias de Deus, da Batista e da Congregação Cristã do Brasil. A IURD foi iniciada em 1977 pelo pastor Edir Macedo, que durante anos seguiu a palavra do canadense Walter Robert McAlister, fundador da igreja pentecostal Nova Vida. McAlister é o autor do livro Mãe de santo, obra que pode ser considerada precursora do best­seller Orixás, caboclos e guias: deuses ou demônios?, livro escrito por Macedo em 1997 e que tem mais de três milhões de cópias vendidas no mundo todo.

Para a antropóloga e pesquisadora Rosalira Oliveira, o fundamentalismo propagado por estas igrejas é ligado a noção de mundo difundida pela doutrina neopentecostal. “A cosmovisão deles é de que o mundo é um campo de batalha entre deus e o diabo, e você tem que estar atento, por que o diabo é cheio de truques”, explica ela. Nessa constante batalha, tudo o que destoa da doutrina pentecostal é visto como demoníaco.

Para o também antropólogo e especialista Reginaldo Prandi, a origem desse fenômeno pode está no fato de que “para os neopentecostais, a fonte de todo mal é o Diabo. Quando alguém age erradamente, é o Diabo o responsável, e não a pessoa. O que se tem de fazer, portanto, é evitar a presença do Diabo”.