HCTP: a prisão perpétua brasileira

Por Anamaria Nascimento, do Diario de Pernambuco

Quinze pacientes do HCTP já deveriam ter deixado a unidade mas permanecem presos porque as famílias não os querem de volta

Fernando dos Santos está na unidade há 30 anos. Ele foi preso após matar a mãe, a avó e a cachorra. Fotos: Blenda Souto Maior/DP/D.A Press
Fernando dos Santos está na unidade há 30 anos. Ele foi preso após matar a mãe, a avó e a cachorra. Fotos: Blenda Souto Maior/DP/D.A Press

Fernando dos Santos chegou ao Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP-PE), em Itamaracá, com 25 anos. Hoje, aos 55, permanece internado, mesmo que a ordem judicial determinando sua saída do único manicômio judiciário do estado tenha sido expedida há dois anos. A história de Fernando se repete com outros 14 internos, que já deveriam ser reinseridos à sociedade, mas não deixam o HCTP porque os parentes não os aceitam de volta. Julgados pelas próprias famílias, os pacientes são condenados a uma prisão perpétua à brasileira. São pessoas que, apesar de já terem cumprido a medida de segurança definida pela Justiça, permanecem enclausuradas sem previsão para sair.

Destino de pacientes psiquiátricos que cometeram crimes, o HCTP atende a 570 pacientes, mas tem capacidade para apenas 372 usuários. O maior problema da instituição é, hoje, o excesso de pacientes provisórios. Dos 570, apenas 208 cumprem medida de segurança. Os demais ainda têm situação indefinida. De acordo com o diretor do HCTP, Bartolomeu Miranda, 198 são internos provisórios, que aguardam os juízes decidirem se o paciente deverá permanecer no hospital ou ser encaminhado a uma penitenciária para cumprir pena. “Há ainda os casos dos pacientes que já deveriam ter saído da instituição, mas aqui permanecem pois os parentes não os querem de volta ao seio familiar”, relata.

Um dos internos mais antigos do HCTP, Fernando permanece sem previsão para deixar o hospital de custódia. Apesar de já estar no local há três décadas, só começou a receber visitas no último ano. Um sobrinho vai ao HCTP mensalmente para conversar e informar como está a família. “Quero ver meu pai e o mar”, revela o paciente diagnosticado com oligofrenia, um déficit de inteligência, e distúrbios de comportamento. Ele foi para a instituição depois de matar a mãe, a avó e a cachorra, em 1984, no Cabo de Santo Agostinho.

O artigo 26 do Código Penal determina que são isentos de pena os portadores de doença mental que cometeram crimes e não são capazes de entender o caráter ilícito de sua ação. Esses pacientes não cumprem pena privativa de liberdade em penitenciária comum. Eles cumprem medida de segurança em unidades como o HCTP, onde são internados e devem receber tratamento adequado. “A maioria dos crimes cometidos por essas pessoas são intrafamiliares, por isso, a rejeição dos parentes mesmo quando os pacientes estão prontos para serem reinseridos na sociedade. Não podemos liberá-los sem o consentimento da família porque os pacientes precisam de acompanhamento e tratamento adequados”, explica a psicóloga do HCTP, Amélia Lins.

“Queria ver meus irmãos,
minhas irmãs e a rua”

Rivonaldo
Rivonaldo Pereira trabalaha no almoxarifado do HCTP

Antes de chegar ao HCTP, em 2006, Rivonaldo Pereira, 27 anos, trabalhava como carregador de lenha. Mesmo diagnosticado com esquizofrenia, não recebia tratamento adequado. Durante um surto, matou o pai. O crime aconteceu em Santa Maria do Cambucá, Agreste do estado. Hoje, ele trabalha no almoxarifado do Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico, frequenta a escola instalada na institução e tem a doença controlada. Apesar disso, só recebe visitas de um tio, que o conheceu na infância. “Ele já veio duas vezes, mas eu queria ver minhas irmãs e irmãos. Gostaria também de voltar a trabalhar e ver a rua”, desabafa.  Rivonaldo já poderia estar em casa, com a família, mas os parentes informaram à direção do HCTP que preferem que ele permaneça lá.

“Não conseguia
me controlar”

Marcelo Brito também não foi aceito de volta pela família
Marcelo Brito também não foi aceito de volta pela família

O uso de álcool e drogas agravou os surtos causados pela esquizofrenia diagnosticada ainda na adolescência de Marcelo Brito, 29 anos. Antes de ser preso, o trabalhador rural chegou a ser internado três vezes. “Eu não conseguia me controlar. Todo dinheiro que ganhava no serviço gastava com a ‘branquinha’”, diz lembrando do costume de tomar cachaça quando largava do trabalho. Um dia, depois de beber, Marcelo lembra que foi à casa de uma mulher, em Belém de Maria, no Agreste do estado, para pedir um prato de comida. “Só queria me alimentar, mas a polícia chegou depois”, recorda. Na ficha policial, o campo motivação está preenchido com o termo tentativa de estupro. “Hoje eu sei que preciso de tratamento, tenho consciência da minha doença”, afirma. Procurada pela equipe de assistência social do HCTP, a mãe de Marcelo se recusou a recebê-lo de volta porque “ele dava muito trabalho e corria atrás das mulheres da cidade”.

Condenação vem da própria família

A penalização dos pacientes do HCTP é maior socialmente do que para o estado. A constatação é da articuladora do Movimento de Direitos Humanos Wilma Melo. “A pena social é perpétua e a própria família condena os internos. Muitos parentes têm medo que eles voltem e cometam outros delitos”, pontua. Segundo Wilma, muitos dos pacientes esquecidos ou excluídos pela família já se adaptaram ao sistema. “Em uma das visitas, um deles assegurou que não queria sair. Sem vínculo familiar é até compreensível. Ir para onde? Fazer o quê? Viver de quê?”, questiona.

Para reinserir os pacientes na família, a equipe de assistência social do HCTP iniciou um mutirão de localização dos parentes. Quando o trabalho foi iniciado, em 2013, 31 pacientes estavam com alvará de desinternação expedido. O número caiu para 15. “Fazemos visitas à família ou, em alguns casos, contamos com a ajuda da rede de saúde do município onde essas pessoas vivem. Assim, conseguimos reatar esses laços perdidos”, esclarece a assistente social Carmen Gomes.

O promotor da Vara de Execuções Penais do estado Marcellus Ugiette lembrou dos estudos do Ministério Público de Pernambuco (MPPE) para desativar o HCTP. O objetivo é cumprir a lei federal 10.216, em vigor desde 2001, que prevê a desinstitucionalização dos manicômios e a reinserção dos pacientes à sociedade. “Minas Gerais e Goiás têm experiências exitosas com as residências terapêuticas de tratamento individualizado”, aponta o promotor que coordenou um grupo de trabalho sobre as condições de tratamento oferecido aos pacientes.


Saiba Mais

HCTP em números:

570 internos:
538 homens
32 mulheres

372 é a capacidade do hospital de custódia

208 internos respondem por medidas de segurança, ou seja, tem insanidade mental comprovada

164 aguardam exame de sanidade mental

198 são internos provisórios

183 estão aguardando decisão da Justiça

15 já receberam alvará de soltura, mas permanecem no HCTP, pois a família não aceita de volta

Fonte: HCTP-PE