Vozes contra o machismo

A voz que emana dos estádios é, muitas vezes, violenta, excludente e, sobretudo, machista. Mas, para as mulheres, esses impedimentos vêm se tornando um propulsor para resistir. Torcedoras de Náutico, Santa Cruz e Sport querem ser ouvidas. Tanto que em 2016 surgiram movimentos femininos em prol da maior participação de mulheres dentro dos estádios. Timbuzeiras, Coralinas e Elas e o Sport atestam que as arquibancadas podem ter, cada vez mais, um rosto feminino. Apesar dos movimentos terem origens diferentes, há um ponto em comum: o empoderamento das mulheres. Nesta série de reportagens, o Superesportes apresenta os três grupos, por ordem de fundação, e mostra o que querem as mulheres que estão por trás deles.

Textos: Camila Sousa Edição: Filipe Assis Web: Jaíne Cintra

Grupo que começou com cinco leoninas agora reúne cerca de 150 rubro-negras

Para elas, o Sport é religião

Em fevereiro de 2016, o grupo Elas e o Sport surgiu com apenas cinco mulheres. Pioneiro, incentivou alvirrubras e tricolores, que no mesmo ano criaram os seus grupos. No início, eram apenas cinco rubro-negras. Hoje, são mais de 150, em diferentes faixas de idade, vibrando pelo Leão da Praça da Bandeira. O pontapé inicial do movimento se deu através do Facebook. A fundadora, Vivianne Soares, 22 anos, conta que fazia parte de grupos do Sport na internet, em fóruns de redes sociais, e que já se encontrava com outras meninas na Ilha do Retiro. Mas, segundo a estudante, por serem mulheres e falarem sobre futebol, tinham suas opiniões sempre “postas à prova”. Por isso, decidiram criar um espaço unicamente voltado para as torcedoras rubro-negras. De leoas para leoas.

“Tivemos a ideia de criar um espaço onde nós pudessemos falar de futebol sem sermos recriminadas. A gente notava nesses ambientes que a mulher era sempre posta em segundo plano. Todas as opiniões que a gente emitia não eram vistas da mesma maneira que as emitidas por homens. Então, a gente fez o Elas e o Sport com a intenção de unir as mulheres que torcem pelo Sport para que elas pudessem ter esse espaço, essa voz e consigam frequentar a arquibancada com mais segurança”, explicou a rubro-negra.

União que se reflete para além do amor ao Leão. O Sport é, apenas, um meio. Porque envolve o sentimento de pertencimento a um grupo que luta pelo mesmo ideal. De que a mulher possa ser o que bem entender. Principalmente, torcedora. “O que nos une é o fato de sermos torcedoras, sermos mulheres e sermos amantes do Sport Club do Recife e de todas nós querermos fazer valer esse espaço. Ter voz dentro das arquibancadas e dentro do clube também”, acrescentou.

Entretanto, quando as garotas assumem o protagonismo de torcer e vibrar dentro de campo como bem querem, é uma tarefa árdua. A docilidade e o recato, atributos quase sempre impostos à figura feminina, são cobrados dentro dos estádios. “No clássico entre Sport e Santa pelo Pernambucano de 2018 aqui na Ilha, a gente ouviu de um torcedor, várias vezes, que nosso grupo era uma ‘escola de palavrões’. Na cabeça dele, mulher não pode chamar palavrão, tem que torcer recolhida. Caso cante, é motivo de briga”, relembrou Vivianne.

E é justamente por causa dos enfrentamentos diários contra o machismo dentro dos estádios, que o legado consolidado por elas, que são resistência, é bem maior do que as retaliações sofridas. “Lugar de mulher é onde ela quiser, inclusive no estádio. A gente tem que buscar construir sempre nosso espaço e quebrar esses muros que nos impedem de atuar. Temos essa ideia de inclusão, de agregar o maior número de meninas vibrando pelo Sport. O que a gente quer deixar é isso, a construção da nossa identidade”, reforçou a torcedora do Leão. A atuação das rubro-negras apaixonadas pelo Leão não se limita às quatro linhas. Fora de campo, elas também provam que batem um bolão. Visitas a creches, campanhas contra o machismo dentro dos estádios, doação de livros para crianças e campanhas em prol do combate ao câncer de mama – todo mês de outubro as torcedores se reúnem na Ilha do Retiro para angariar fundos e doá-los ao Hospital do Câncer de Mama de Pernambuco – são algumas das ações do Elas e o Sport.

Além destes projetos, as meninas lançaram em 2016 um bloco de carnaval chamado As Marias do Sport, em homenagem a Dona Maria, torcedora símbolo do Rubro-negro. De lá para cá, todos os anos ele sai nas ruas do Recife. E, paras meninas do movimento, o sentimento é de gratidão. “É de muita honra para a gente ter uma torcedora símbolo no nosso clube. Então, para a gente, Dona Maria sempre foi uma representação feminina, uma das maiores do Brasil. E enaltecer isso é muito importante”, afirmou.

“A gente tem que buscar construir sempre nosso espaço e quebrar esses muros que nos impedem de atuar. Temos essa ideia de inclusão, de agregar o maior número de meninas vibrando pelo Sport. O que a gente quer deixar é isso, a construção da nossa identidade”

Vivianne Soares, fundadora do grupo Elas e o Sport
As Timbuzeiras surgiram a partir da ideia de organizar caronas para a Arena de PE
Crédito: Rafael Mello/Divulgação.

A força e a raça delas

A ideia era organizar caronas para os jogos do Náutico. Em 2016, o Náutico que, à época, disputava a Série B do Brasileirão, mandava suas partidas na Arena de Pernambuco. Somada à distância da capital, outra dificuldade era o horário tarde dos jogos, sobretudo quando ocorriam em dias de semana. Assim, um grupo de mulheres criou o movimento Carona Amiga. Porém, quando elas se conheceram, pensaram imediatamente em criar uma torcida. Surgia as Timbuzeiras.

“Quando começamos, foi para juntar um grupo de alvirrubras que tivessem a ideia de assistir aos jogos juntas. Iniciamos com 12 meninas. Inclusive, sentamos para conversar e fazer um estatuto para realmente tornar uma torcida. Aí, surgiu o Timbuzeiras. No estatuto, por exemplo, nós colocamos como meta de, ano em ano, fazermos uma campanha em prol da caridade”, explicou Vanessa Capistrano, de 30 anos. Em todo mês de janeiro, as alvirrubras programam um calendário anual de ações sociais. Dia das Mães, Dia dos Pais, Dia das Crianças, Dia das Mulheres e Natal são alguns deles.

Para dar funcionamento às demandas, as Timbuzeiras se dividem em três departamentos: o financeiro, social e de mídias. Assim que entram no movimento, as meninas enviam um formulário de interesse para participar dos respectivos grupos. As integrantes depositam R$ 5, todo início de mês, no caixa do grupo, para viabilizar caravanas e planejar ações fora dos estádios. E, em mídias, têm a incumbência de alimentar os perfis da torcida na Internet, com fotos e notícias gerais do Náutico.

Entretanto, o empenho às vezes não é suficiente para serem reconhecidas como aquilo que verdadeiramente são: torcedoras apaixonadas. “A gente tenta ultrapassar essa barreira da presença da mulher no futebol. Para nós, é muito normal mulher saber de futebol, entender de futebol. Mas quando saímos do nosso mundo, as pessoas não enxergam assim. Enxergam que estamos na arquibancada para ser uma T-leader. Menos para simplesmente ver o time jogar”, lamentou Vanessa.

Buscar um lugar ao sol em um ambiente que, muitas vezes, repele a presença de mulheres e tem no machismo sua pior face, é um cenário de conflito corriqueiro para as alvirrubras. É comum, nos jogos, elas serem chamadas de “marias chuteiras” e outros xingamentos impublicáveis. Para Vanessa, o sentimento é de tristeza, pois elas buscam o mínimo, que é o respeito. “Nós já tivemos muitos casos de meninas que sofreram assédio na torcida. Isso é horrível, porque a gente está buscando igualdade em um ambiente que é extremamente machista”, lamentou.

O ponto fundamental, apesar do cenário muitas vezes desolador, é passar o bastão para outras personagens e alimentar um ciclo de participação maior de mulheres para ocuparem os estádios. É plantar a semente da resistência. “Eu acho que mais do que reconhecimento, é a questão do deixar para que as pessoas, as meninas, no geral, possam perceber que em qualquer lugar, apesar de existir muito preconceito, elas podem ir. A gente não pode calar nossa voz”, completou a alvirrubra.

“A gente tenta ultrapassar essa barreira da presença da mulher no futebol. Para nós, é muito normal mulher saber de futebol, entender de futebol. Mas quando saímos do nosso mundo, as pessoas não enxergam assim. Nós já tivemos muitos casos de meninas que sofreram assédio na torcida. Isso é horrível, porque a gente está buscando igualdade em um ambiente que é extremamente machista”

Vanessa Capistrano, líder das Timbuzeiras

Cantarão por ti a tua tradição

Grupo foi fundado no pátio da Igreja de Santa Cruz
Crédito: Bela Azoubel/Divulgação.

As torcedoras do Santa Cruz carregam em suas origens a história de inclusão do próprio clube. O Tricolor foi o primeiro time profissional de Pernambuco a aceitar jogadores negros em seu plantel. Criado no Pátio da Igreja de Santa Cruz, no bairro da Boa Vista, o Santa trouxe inúmeros legados às Coralinas, o movimento feminino – e feminista – do clube. O grupo, inclusive, nascido em 2016, também se espelhou na origem da equipe coral, uma vez que foi fundado no mesmo lugar onde o clube foi criado.

A jornalista Maiara Melo, uma das atuais lideranças, embora não tenha participado do surgimento do grupo, conta que as torcedoras já se encontravam no Arruda para assistir aos jogos do Santa Cruz, antes de pensarem em formar uma torcida. “Ainda existem muitos problemas hoje no estádio com as mulheres, e começamos a conversar sobre eles. Alguém deu a ideia de formarmos um coletivo. E, no dia 5 de agosto de 2016, surgiu o Movimento Coralinas”, explicou a integrante.

O Movimento Coralinas é um exemplo que ultrapassou as barreiras do Arruda em termos de atuação política. Publicamente reconhecido pelas integrantes como um movimento feminista, o coletivo faz parceria com organizações políticas, encabeçando parcerias com ocupações, como a Marielle Franco, no centro do Recife.

Além disso, ano a ano, discute o espaço ocupado pelas mulheres no futebol com lideranças femininas de outras torcidas de Pernambuco e até de outros estados do Brasil. Em 2018, o Coralinas promoveu o I Encontro de Mulheres no Futebol, com torcedoras do Náutico, Sport, Internacional e Grêmio.

Um dia após o Dia das Mulheres, o grupo realizou um fórum de discussão sobre futebol unicamente composto por personagens femininas, intitulado “Mulher no futebol: resiliência através da luta coletiva”. Além dessa frente de atuação, as Coralinas ainda fazem o Dia das Crianças com torcedores corais carentes, doando livros sobre feminismo, camisas do Santa Cruz e ainda dão oportunidade para os pequenos entrarem no Arruda.

“O que une a gente é essa vontade de estar nos espaços lutando para que outras mulheres também ocupem o futebol. Que ele se torne mais propício, mais acolhedor para as mulheres. Então, é importante para gente ter esse sentimento de pertencimento, pertencimento por parte da sociedade de que a arquibancada é nosso espaço. O Santa Cruz é só um meio, que nós somos apaixonadas, que nós escolhemos viver e vibrar. E então nós queremos existir dentro disso”, destacou Maiara.

Articulação esta que se mostra crucial para pensar os rumos do movimento, cujo objetivo é criar formas de proteção frente a quaisquer tipos de violência contra as mulheres dentro do estádio. Situação em que a torcedora tricolor – foi agredida fisicamente por um policial na partida contra o Operário, pela Série C, no Arruda – reconhece as dificuldades de se combater.

“Existe a ideia de que a mulher no futebol é para ornar, para enfeitar arquibancada. Não. A gente está ali para torcer, assim como os homens. Os homens não vão para estádio enfeitar arquibancada, vão para torcer. São coisas cansativas, porque a gente está querendo ir para o estádio torcer, querendo empurrar nosso time e viver nossa paixão. Mas, ser mulher, existir como mulher e resistir enquanto mulher dentro do futebol é sempre uma luta.”

“O que une a gente é essa vontade de estar nos espaços lutando para que outras mulheres também ocupem o futebol. Que ele se torne mais propício, mais acolhedor para as mulheres. O Santa Cruz é só um meio, que nós somos apaixonadas, que nós escolhemos viver e vibrar. E então nós queremos existir dentro disso”

Maiara Melo, líder do movimento Coralinas