Em Foco 1308
Everaldo Procópio, ex-motorista de Arraes e de Eduardo, chora neste 13 de agosto a morte das suas duas principais referências de vida.

Silvia Bessa (texto)
Rodrigo Silva (foto)

No retrovisor da Caravan marrom sem ar-condicionado, Everaldo Procópio amarrou uma boneca de pano e o adorno veio balançando do Crato, no Ceará, até o Recife. Miguel Arraes olhou umas cinco vezes enviesado. “Tinha um negócio de suspirar. Eu, novo, fiquei sem entender”. Um dia, perto de Casa Forte, o filho Lula perguntou de que se tratava. O pai respondeu: “Isso é um horror na minha frente”. Arraes se manifestava assim. Everaldo, em silêncio, arrancou com uma mão só o penduricalho. Com Eduardo Campos, “arengou” dezenas de vezes a bordo da Veraneio vermelha. O motorista, policial militar e assessor-faz-tudo calava, mostrava cara feia mantendo a cabeça reta, querendo desviar da raiva de Eduardo, e esperava pelo “arrependimento da briga besta”. Até que vinha a inquietude: “Tá com raiva de mim, negão? Mas, rapaz, não posso reclamar nada”. Dois quilômetros adiante, abraçava Everaldo ainda guiando a direção e seguiam viagem. “Quando o cara é amigo tem direito de discordar. E ele era como um irmão para mim”.
Everaldo Procópio era o cidadão que comia poeira com Arraes e Eduardo nas estradas, em momentos distintos, quando os dois estavam brigando pelos milhares de votos que lhes deram poder, prestígio e admiração. Não fazia política, mas está nos bastidores dela há 36 anos. Começou com Arraes quando ele voltou do exílio, em 1979, ficou com Eduardo até a morte dele em 13 de agosto de 2014. Hoje diz que sua preocupação é oferecer suporte aos “meninos”. De forma mais dedicada a Miguel, o caçula de Eduardo, portador de síndrome de Down, quando ele precisar. Nesta quinta-feira, Everaldo (62 anos) chora a morte de dois dos seus ex-chefes – os ex-governadores Miguel Arraes e Eduardo Campos. Um, falecido há 10 anos; o outro, há um ano.
Ontem Everaldo estava com cuidado para não esquecer de tomar uma dose de Citoneurin injetável, um potente analgésico que talvez ajudasse na preparação para o dia de hoje, feito de homenagens e recordações. No jardim do Palácio, cenário cheio de afeto, com orgulho lembrava de quando dirigia para Arraes em tempos de planície e “ninguém queria a gente por perto” e do crescimento de Eduardo, passando pela fase em que se tornou “o contador de histórias, tradutor das pessoas que queriam chegar junto de Arraes”. “Eduardo foi porta-voz, meio-campo de Arraes e assim conseguiu experiência. Por isso, quando foi governador de verdade, já tinha sido governador duas vezes”.
Everaldo o conheceu adolescente, perto dos 14 anos (“Dona Ana Arraes recomendava que eu olhasse ele quando saía com a gente”), esteve com ele na juventude, adulto como candidato em várias campanhas e a última frase que ouviu de Eduardo foi assim: “Negão, vou me preparar para arrebentar na entrevista da Globo”. Jovem, Eduardo ia para encontro com amigos e ele ficava despistando e o vendo de longe, temendo qualquer incidente com ele. Eduardo retribuía a atenção. Everaldo “deixou” Arraes duas vezes por salário maior e Eduardo aos 18 anos foi a sua casa pedindo que voltasse. Da rotina juntos, gosta em particular dos causos vividos na Veraneio vermelha, de 1994 em diante.
“Nessa Veraneio vivemos muito. Foi repassada uns oito anos depois de comprada com mais de 200 mil quilômetros rodados”, conta. Tirou alguns bancos traseiros do veículo, mandou colocar um cabideiro para roupas, um bar para armazenar comidas e bebidas e uma cama para ser utilizada como dormitório em caso de necessidade. “Se fosse dormir agarrado dava para duas pessoas. Sozinho, dava para uma à vontade”, lembra. “A Veraneio foi da época em que não se andava de helicóptero para cumprir agenda de campanha”. À noite, em casa, ao lembrar dos últimos 36 anos com Eduardo, Everaldo Procópio chora a perda daquele que considerava o “irmão solidário de todos os momentos”. Do homem que “lia seus pensamentos” de tanto que lhe entendia, lhe conhecia e que lhe motivava com a frase certa.
Everaldo fala sobre Arraes como um mito, usa expressões como “direitona”, conjuga o “nós”, como se fizesse parte do mesmo grupo. Sobre Eduardo, eleva os olhos, o menciona com intimidade. “Vou te dizer, eu não existiria sem Eduardo e não percebia isso porque tudo era uma brincadeira para a gente”, confidencia, lembrando que seus filhos e netos chamavam o ex-governador de “tio”.
Diz que nunca pensou em se aposentar até a morte do “irmão” de consideração. Há um ano, tomou essa decisão e luta em busca dos papéis. Esta semana estava em Brasília para vender um imóvel que lá tinha e que agora não vê mais função para a residência. Começa a refazer a vida e pensa em continuar “cuidando” da família de Eduardo. “Não posso ir para casa. Quero continuar no meio das pessoas que eu vi nascer e de quem eu gosto”. Everaldo faz questão de dizer que dá valor à gratidão e que foi “formado” numa escola onde os gestos são mais importantes. A escola de Arraes.