Em Foco 0411

Temendo que a qualidade de vida diminua com a chegada em massa de refugiados à Alemanha, moradores demonstram cada vez mais intolerância à presença deles e risco de confronto aumenta.

Luce Pereira (texto)
Jarbas (arte)

A exuberância da natureza no outono europeu não é mais o que tem chamado a atenção de milhares de visitantes que escolhem a Alemanha como destino para passar férias. Lixeiras reviradas, pessoas vestindo roupas puídas, que se instalam em avenidas charmosas com seus poucos pertences, destoam da habitual elegância dos moradores, nesta época, e arrancam da maioria não expressões de piedade ou palavras de apoio, mas olhares de reprovação. As tendas instaladas pela Cruz Vermelha no centro de cidades como Hamburgo (Norte), por exemplo, lembram aos insatisfeitos com a onda de refugiados no país que precisam refazer diariamente a conta mais incômoda das últimas décadas: quantos, além das centenas de milhares já recebidas dentro da nova política de acolhimento do governo, teriam desembarcado nas últimas 24 horas em terras alemãs? Morrem de medo da resposta e, sobretudo, do futuro.
Em Bremen (Norte), fui encontrar um executivo de uma das maiores representações de alimentos da Europa, que trabalha com produtos de vários países. Vamos chamá-lo de R.W. Estava revoltado e pessimista, antevendo que o país será “dominado” por um tipo de cultura que em nada lembra aquela pela qual a Alemanha acostumou-se a ser identificada mundo afora. O medo de R., a princípio, é a banalização da violência, flagelo que acabaria por expor o país a um dos seus maiores fantasmas. Uma vez vulnerável, a sociedade ficaria refém da nova ordem e a situação, fora do controle do governo. “O que me incomoda mesmo é o tipo de cultura, pois vão acabar querendo que convivamos com a violência, tão natural para eles”, diz o executivo, num português sofrível, aprendido depois de mais de 20 anos de casamento com uma brasileira do Sertão de Pernambuco.
A apreensão de R. não é menor do que o descontentamento de N.M, outra brasileira, enfermeira há mais 15 anos em um dos maiores hospitais públicos de Hamburgo. De repente, nos arredores da tranquila Malzweg, onde mora com a filha que acaba de ingressar na universidade, nota que a lixeira foi revirada e aproveita para criticar a troca de roupas feita ali mesmo, na rua. Teriam sido refugiados a jogar no chão os farrapos com os quais se vestiram até encontrar peças que, em outros tempos, seriam recolhidas pela Cruz Vermelha para doação a pessoas pobres, assistidas por instituições sociais. O discurso é o mesmo: acredita que os habitantes viverão tempos difíceis, submetidos a uma violência que tanto poderá vir da cultura dos “invasores” quanto da disputa por vagas no mercado de trabalho, inevitável, segundo ela.
Ao discurso xenofóbico da mãe, a filha reage lembrando que ela própria, tempos atrás, precisou de uma oportunidade na Alemanha – a mesma em busca da qual estão os estrangeiros banidos dos seus países pela guerra – e que o medo é infundado, pois tudo não passa de especulação em torno do futuro. Compreensível, a moça cursa sociologia e faz parte de uma geração crente na teoria de que o sol nasceu para todos. Numericamente, está em franca desvantagem, pois o universo de defensores míngua a olhos vistos, na medida em que a propaganda anti-refugiados se robustece.
Diante dos aparelhos de TV, de um modo geral, os alemãs torcem cada vez mais o nariz para as aparições da chanceler Angela Merkel, enquanto as redes sociais ironizam a postura do governo, retratando-a com as roupas de Madre Teresa de Calcutá. São relativamente contidos diante das imagens de protestos que pipocam no país contra a política de acolhimento dos refugiados, porém não demonstram mais do que indiferença diante de cenas de tragédias ocorridas durante a travessia de barcos lotados rumo a cidades da Europa. No país, a esta altura, as vitrines já estão enfeitadas para o Natal, que costuma ser uma data especialíssima para a população, mas, desta vez, nem o espírito natalino deve conseguir transpor as barreiras criadas pelas diferenças. Neste caso, quem perde mesmo é a humanidade.