Em Foco 0511

O assistencialismo não busca eliminar a pobreza, mas perpetuá-la, para aproveitar-se dela, dizia Herbert de Souza, o Betinho.

Vandeck Santiago (texto)
Wilson Dias/ABR (foto)

Então o jornalista lhe perguntou:
– Você tem medo da morte?
E ele:
– Não, eu só tenho medo de uma coisa que eu já conversei com o meu médico. Eu falo: ‘Olha, morrer não tem problema, mas sofrer não’. Sofrer, ninguém merece sofrer, principalmente de dor.
O autor dessa frase faria anteontem 80 anos. “Faria”, porque morreu bem antes, aos 61 anos, em 9 de agosto de 1997. Vocês já devem ter ouvido falar dele: Herbert de Souza, o Betinho. Lançou em 1993 a maior campanha de solidariedade da história do Brasil: a Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, cujo lema inicial era “Cada um pode fazer alguma coisa pelo outro”. Na época o assunto que dominava as manchetes da imprensa e os debates políticos era a corrupção. Parecia que não havia outro tema importante a ser discutido no país – mas havia, como mostrou o sucesso do lançamento de Betinho. A sociedade brasileira encampou a ideia, rapidamente surgiram 3.000 comitês da Ação por todo o país. Em 1994 o então presidente da República, Itamar Franco, tornou o assunto política de estado, criando o Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional). No mesmo ano Betinho foi indicado para o Nobel da Paz.
O sucesso não se deu sem críticas, tanto da direita (que nunca se entusiasmou com esta história de ajudar pobres) quanto da esquerda (que via o movimento como um “paliativo assistencialista”, que na prática atenuaria a revolta contra a situação de fome e miséria e atrapalharia a mobilização pela “transformação estrutural da sociedade”). Betinho tinha outra opinião: “Eu acho que o assistencialista não quer acabar com a miséria, ele quer perpetuá-la de outra forma. Na verdade ele é uma espécie de gigolô da miséria e não quer promover quem ajuda. Eu acho que a solidariedade é uma coisa completamente diferente”.
No começo as críticas da esquerda prejudicaram a Ação, conforme disse o próprio Betinho, em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, em 23 de dezembro de 1996 (são daí as frases dele que utilizamos aqui): “E foi exatamente a confusão que muita gente estabeleceu, entre uma coisa e outra [assistencialismo x solidariedade], que nos prejudicou muito no início da campanha. Porque eu dizia assim: ‘Quem tem fome, tem pressa’, e se você não oferece comida a quem está morrendo de fome hoje, não adianta você pensar na reforma estrutural daqui a 10 anos, porque não vai ter população para viver a reforma. Aí as pessoas diziam: ‘Mas isso é assistencialismo’, principalmente a esquerda. A esquerda tinha uma reação meio furiosa com a Campanha da Fome, porque ela dizia: ‘Você está atrapalhando a revolução’”. Na época o Brasil tinha 32 milhões de miseráveis, segundo o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada).
A campanha superou as dificuldades iniciais, tornou-se um sucesso e acabou encampada pela esquerda, sem restrições. Betinho, cuja militância começara em grupos progressistas da Igreja Católica, era um homem de esquerda, de orientação maoísta. Integrou a Ação Popular, organização que combateu o regime militar instaurado em 1964. Atuou clandestinamente no país e para não ser morto pela ditadura foi para o exílio (viveu em Cuba, Chile, Uruguai, Panamá e Canadá). Sua história acaba de virar documentário, lançado em celebração à data dos seus 80 anos (Betinho – A esperança equilibrista, de Victor Lopes, vencedor no mês passado do prêmio de melhor documentário pelo júri popular no Festival de Cinema do Rio).
De saúde frágil desde a infância, teve tuberculose, foi hemofílico e contraiu o vírus da Aids em transfusões com sangue contaminado. Morreu de uma hepatite tipo C, contraída também nas transfusões. Era irmão do famoso cartunista Henfil e do músico Chico Mário. Todos três hemofílicos, doença herdada da mãe. Henfil morreu com 43 anos; Chico, com 40. Ambos em 1988. Uma trajetória familiar que à primeira vista poderia parecer motivo de tristeza e amargura, mas não foi assim.
Então o jornalista lhe perguntou:
– Você acha que a vida foi justa ou injusta com você?
E Betinho:
– Eu te digo francamente que sou um privilegiado. Eu acho que o que aconteceu comigo ao longo da vida foi uma sucessão infinita de sortes. Não era para estar vivo quando nasci, porque hemofílico não sobrevivia, eu sobrevivi. Eu sou um hemofílico com 61 anos de idade, essa é a primeira sorte. Depois, eu sobrevivi a uma tuberculose, quando a tuberculose era a Aids ou câncer ou a lepra nos anos 1950. Eu sobrevivi à clandestinidade, eu sobrevivi ao Fleury [Sérgio Paranhos Fleury, o mais temido delegado do DOPS durante a ditadura], olha que não é pouca coisa. Estou sobrevivendo à Aids. E sempre na risca, quando a coisa está chegando para terminar e etc.