Em Foco 0611
Sem ter onde caminhar, população do Recife fica à margem de mudanças que se processam no mundo para fazer dos espaços públicos grandes aliados da qualidade de vida.

Luce Pereira
Arte sobre foto de Heitor Cunha (Imagem)

Quando se olha atentamente uma calçada do Recife, dois sentimentos mudam de lugar – a vergonha passa a vir em primeiro e o orgulho (pela cidade), em último. Naturalmente, pois o péssimo estado da maioria delas acaba refletindo o nível de importância do cidadão para quem, em tese, deveria zelar pela qualidade de vida de todos – o poder público. Afinal, temos um? Difícil imaginar que sim quando o problema segue desafiando gestores, décadas a fio. Avaliados a partir deste parâmetro, nenhum, até hoje, entraria para a História como “inesquecível”– muito pelo contrário: a falta de cuidado é tamanha que mais justo seria criar um ranking com aqueles que menos se preocuparam. O resultado é que, aos olhos do mundo, não passamos de “metrópole” de terceira categoria, como são as que impedem a população de desfrutar de espaços públicos com qualidade.
Tão intrigante quanto a persistência do quadro seria imaginar que gestores, nas muitas circuladas pelo mundo, veem/andam por calçadas bem cuidadas e retornam sem qualquer dúvida sobre o quanto elas refletem a relação de respeito do poder público com os habitantes. No entanto, nenhum argumento se impõe à justificativa de que se trata de “um problema complexo”, mesmo estando evidente o empenho de muitos municípios em combatê-lo. São Paulo, por exemplo, que, além de criar uma associação de pedestres, decidiu trazer para o Seminário Internacional Cidades a pé (25 a 28, Instituto Tomie Othake) especialistas de vários países. A ideia é descobrir formas mais eficientes e rápidas de transformar as ruas em espaços convidativos para caminhadas, o que não se concebe com calçadas destruídas, muitas delas representando ameaça constante à integridade física do usuário.
Áreas públicas decadentes dão a impressão de que a cidade não pertence às pessoas e que se destinam a serem apreciadas das janelas de carros, hoje, no entanto, não mais os mocinhos da história e sim vilões da mobilidade e do meio ambiente. À medida que hábitos mais saudáveis se impuseram como filosofia de vida, nos grandes centros urbanos, eles passaram de solução a problema – o trânsito entrou para a lista dos grandes inimigos da qualidade de vida. Agora a ordem é simplificar transformando as pernas no “transporte” da vez, para o qual, no entanto, apenas governos que enxergam à frente se mostram preparados. Só eles entendem calçadas como o “primeiro degrau da cidadania”, conceito, aliás, defendido em livro por Francisco Cunha, um dos nomes mais conhecidos por estudar o assunto, em Pernambuco.
E elas fazem tanta falta que chegam até a arrancar suspiros de recifenses em viagem a Londres, por exemplo. Sempre retornam maravilhados com o fato de quase 100% das vias públicas, na capital inglesa, apresentarem calçadas acessíveis para cadeirantes. Sobre o grande abismo a separar realidades em países de cima e de baixo do Equador, é preciso dizer que, apesar de todo o esforço de São Paulo, pouco mais de mil dos 35 mil quilômetros de calçadas oferecem acessibilidade. Quanto ao Recife, falta um fórum com força para expor o tamanho do vexame, a necessidade de diminuí-lo e o nível de comprometimento que governo e instituições precisam ter com o objetivo de mudar o quadro atual. É no mínimo constrangedor e funciona, para os habitantes, como um golpe a mais na já combalida auto-estima.