Em Foco 0711

A incrível história do homem que ficou cego aos 50 anos e hoje empresta o ouvido para atender quem pensa em suicídio ou precisa de apoio emocional.

Silvia Bessa (texto)
Brenda Alcântara (foto)

A primeira providência que seu Valdeci tomou ao saber que estava cego dos dois olhos aos 50 anos e que deveria a partir dali readaptar sua rotina foi pedir à filha Maria Jaqueline uma resposta. “Pegue o dicionário e leia o significado da palavra cego”, recomendou. Jaqueline, aos 11 anos, leu o verbete. “Cego: Que não consegue ver; privado da visão”, diziam algumas das definições. “Entendi neste momento que é melhor cego que deficiente visual. Não vejo julgamento negativo na palavra. Até oriento desse jeito as pessoas quando não me conhecem e se dirigem a mim”. Eis o ponto zero da segunda existência dele. É incrível a revolução que seu Valdeci Gomes da Silva promoveu no seu destino desde o conhecimento, aceitação e compreensão da nova condição de vida, consequência da diabetes e de um glaucoma – doenças de que nunca desconfiou por (palavras dele) “relaxar com a saúde”. Ficou cego e se obstinou a ajudar o outro, com limitações visuais ou não.
Quem por ele passa nunca imagina que aquele homem franzino, munido de bengala prateada dobrável, em certos momentos guiado por desconhecidos nas ruas do Derby ou no entorno da PE-15, todos os meses é luz para cerca de 120 pessoas solitárias, angustiadas, depressivas, imersas em melancolia, saudosas de parentes ou atordoadas por uma insônia. Ele atende em média trinta pessoas só num plantão semanal, que por opção representa uma jornada dupla de outros voluntários. Que aquele senhor, agora com 60 anos, passou por treinamento para realizar com eficiência a acolhida de quem está do outro lado da linha.
A voz de seu Valdeci, calma e compassada, dá conforto das 22h do domingo até as 7h da segunda para quem liga para o 141. O número de telefone é o do Centro de Valorização da Vida (CVV), uma entidade de utilidade pública, existente há mais de cinquenta anos que oferece gratuitamente apoio emocional e faz prevenção de suicídio no Brasil. “Você é muito bem-vindo. Como você está?”, pergunta para quem procura o CVV na capital pernambucana, no ar 24 horas. “Tem vezes que coloco uma garrafa de água perto de mim porque não dá tempo de levantar da cadeira para pegar o copo”, conta seu Valdeci. “Gosto muito do que faço. Quando a pessoa vai trabalhar no CVV pensa que vai ajudar alguém. Engano: a gente é quem evolui espiritualmente como pessoa”, diz ele, parte da equipe de voluntários há oito anos.
Não sabe quem disca o 141 que o bom ouvidor tem uma respeitável jornada de superação que começou há quinze anos. Seu Valdeci enxergava. Começou a trabalhar lá atrás, aos 15 anos com carteira assinada. A lei permitia que com 25 anos de serviço na indústria têxtil de Pernambuco, área considerada insalubre, ele ganhasse aposentadoria. Iria usufruir da tranquilidade e pensar numa nova profissão. Ele chegou a fazer curso e atuar como fotógrafo, massoterapeuta, garçom… A vida com a mulher, Eva, e a filha, Maria Jaqueline, era sortida no que toca a eventos sociais. Foi quando a saúde o surpreendeu. Nunca se revoltou, garantiu-me.
“Quero saber onde é a associação dos cegos?”, perguntou à família. Sabendo que a Associação Beneficente dos Cegos do Recife abriga alguns deficientes como moradores, quis fazer de lá “um laboratório” para entender como seus pares viviam e quais as dificuldades que enfrentavam. “Aproveitei uma viagem de minha mulher e minha filha e fiquei lá. Minha mãe não entendia como eu não ficaria com a família. Não me cobraram nada pela hospedagem. Prometi que voltaria para ajudar”, lembra. Fez curso para aprender a andar de bengala, tapeçaria, ler em braille.
Na sua realfabetização lembrou de quando ensinava a Maria Jaqueline a estudar no então maternal. Estudiosa (tanto que hoje, como universitária de oceonografia da UFPE, enche o pai de orgulho ao participar do programa de intercâmbio Ciência Sem Fronteiras na Nova Zelândia), sempre fez duas ou três lições a mais do que a escola pedia. A professora reclamava. O pai rebatia: “Ela vai continuar fazendo porque não posso limitar os conhecimentos da minha filha”. Seu Valdeci diz ter se dado conta que, na sua readaptação, o subconsciente dele copiou Maria Jaqueline. “A professora de braille me ensinava três letras e eu estudava o alfabeto completo em casa”.
Seu Valdeci, que foi casado por 20 anos até a morte de Eva em 2010 vítima de câncer, hoje mora só e tem uma rotina que inclui idas diárias à associação que o ajudou. Lá, atua como tesoureiro. Um dos seus maiores prazeres é participar do grupo de terapia coletiva às terças-feiras pela manhã. Em casa, na Associação dos Cegos do Recife ou no CVV como uma das vozes que atua na prevenção de suicídios, seu Valdeci é um só: um homem que se dedica a dar apoio a quem necessita. “Deus me deu a oportunidade de ter duas vidas em uma. Foi necessário eu passar pela experiência de ficar cego para ficar à frente de um novo desafio”, diz. “Essa é minha nova vida”.