Em Foco 1311

Representantes de associação recorrem à OEA contra PL de Eduardo Cunha que acaba com direito da vítima de fazer aborto em caso de estupro.

Luce Pereira (texto)
Greg (arte)

Não é preciso lembrar a ninguém cujo olfato esteja funcionando sem restrições que a política brasileira nunca cheirou tão mal. Os danos estão por toda parte e os maiores, é claro, trabalham para alargar a cova onde os autores esperam enterrar de vez a autoestima da população. Os reflexos de tanta desfaçatez e irresponsabilidade, infelizmente, não atingem apenas o bolso do cidadão, mas, também, conquistas na área de direitos humanos, um edifício erguido em bases sólidas, tijolo por tijolo, que agora ameaça ruir porque a roda girou e o jogo político ganhou contornos de arrogância e ultraconservadorismo. No centro de tudo, o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, que se transformou em um apelo e tanto para milhares irem às ruas, movidos por denúncias avassaladoras contra ele. Praticamente uma a cada dia.
A mais recente, por exemplo, tocou de perto a revolta de mulheres reunidas em uma associação de nome Artemis. Elas acabam de bater à porta da Organização dos Estados Americanos (OEA) em busca de apoio contra projeto de lei de autoria de Cunha (PMDB-RJ), aprovado em 21 de outubro, através do qual são postos obstáculos intransponíveis no caminho do aborto legal para vítimas de estupro. O gigantesco retrocesso foi classificado por representantes da entidade como “grave violação aos direitos humanos das mulheres”, mas bem que poderia ficar conhecido como tentativa legal de obstrução do direito da vítima de sobreviver ao crime (hediondo) com menos sequelas.
Além dos onze deputados que disseram sim ao PL, a Artemis também disparou na direção dos integrantes da CCJ e do governo brasileiro – todos acusados de omissão, uma postura cada vez mais mortal e recorrente no centro do poder. A propósito, não existe melhor forma de demonstrar indiferença pelos interesses da população do que silenciar diante de aberrações praticadas contra eles. Tem sido assim.
Com a nova face adquirida pelo poder – de velha ressentida e ultraconservadora -, além do ambiente político propício a atentados contra as liberdades (individual/coletiva), não há como não temer o pior – se é que o pior ainda está por vir. Ao pedir socorro à OEA, a Artemis se insurgiu contra a tendência de desmonte de temas relevantes da vida nacional, que transparece na tentativa de manipulação destas importâncias e no claro objetivo dos mesmos grupos de dar as cartas em um ambiente político absolutamente impermeável a grandes ideias e ideais.
Com a imagem irremediavelmente associada a estes grupos, o presidente da Câmara dos Deputados acabou, com o projeto de lei, incorporando às bandeiras contra sua permanência na presidência na Casa a de mulheres dispostas a bater em outras portas, além da OEA, para garantir a manutenção da conquista, sobre a qual o trator de Cunha passou indiferente à Convenção de Belém do Pará. Ali, em 1994, foi assinado o Tratado Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos das Mulheres.
Enquanto o silêncio contribui para dar eficiência à “cosmética política”, através da qual lobos se confundem com cordeiros, a luta de associações como a Artemis lembra que o futuro poderá ser pior, sim. Basta que continuemos de braços cruzados ou convencidos de que a sociedade passou a sofrer da Síndrome de Estocolmo, estado psicológico no qual, submetida a um tempo de intimidação, a vítima passa a ter simpatia, amizade ou amor pelo carrasco.