O raio de sol varou pela fresta da telha e João da chave levantou-se de um pulo só. Já era quinta-feira.
Luce Pereira (texto)
Jarbas (arte)
Chegou um molambo em casa e bem depois do Bacalhau do Batata. Parecia aquela personagem da música de Ary Barroso, que perdeu-se no turbilhão da galeria, “mamado, chumbado, atravessado”, com um reco-reco na mão. A diferença é que não estava de camisa amarela nem havia ninguém procurando por ele. Faz tempo que não divide o casebre com ninguém e tem sido assim desde que a mulher desistiu de colocá-lo nos eixos. Lembrava um disco arranhado quando resumia toda a indignação pela vida desregrada do marido em um único provérbio: “Pau que nasce torto, não tem jeito, morre torto”. Ele gosta de viver, eis o problema, e deste lado sempre se achou incompreendido. Que mal pode existir em tomar uma cachacinha, dar umas tacadas de sinuca, comer um peixinho na companhia de uns conhecidos, numa beira de praia? Pensando assim, saiu em busca de um Sonrisal. Bateu tudo, segurando nas paredes aqui e ali, mas não encontrou uma só das bolachinhas brancas. No fim das contas, nem água tinha e o cachorro arranhava a porta imaginando que o almoço finalmente havia resolvido dar o ar da graça.
Bebeu o resto de guaraná esquecido em uma garrafa sobre a pia, tirou os sapatos e caiu com o corpo todo na cama desfeita, assustando um guabiru que passava discretamente pelo cômodo. Estava um farrapo, os músculos todos reclamando, mas tão leve, tão leve que podia, só com um sopro, voar de volta para o meio da festa. E logo começou a sonhar o sonho que qualquer folião pediu a Deus. Era sábado de Zé Pereira, ele, João da chave, saía de manhãzinha levando um litro de batida de maracujá embaixo do braço. Bem forte. Encontrava a Praça Sérgio Loreto apinhada, foliões enlouquecidos e a postos para a saída do Galo. Sem praticamente nada na barriga, danava-se a beber com sofreguidão, sendo interrompido por um gringo desengonçado, parecendo ter saído de um safári. O homem pedia um gole, fazendo macaquices com os dedos, e de “yes” em “yes” iam se entendendo. Brincaram que quase morreram, decidindo, então, seguir juntos. Despachado o Galo, já de noite, partiram para Olinda e lá mesmo é que viraram resto de gente. O Homem da Meia Noite chegava a rir deles, com aquele “sorriso de manequim”. Numa hora qualquer, João ouviu o gringo dizer que se chamava John, mas depois não entendeu mais nada. Não importava. Subiram e desceram ladeira, desmaiaram sobre uma delas.
Então foram acordados por um bando de loucos gritando “A corda! A corda!”. Todo mundo de pijama. Depois apuraram a vista e se viram cercados de super-heróis. Batman deu um cutucão em cada um e John achou que poderiam estar num carnaval em Gothan (City). João não fazia ideia nenhuma, apenas perguntava aos seus botões “que peste” era aquilo. Empurrados por milhares, entraram numa onda vermelha chamada Eu Acho é Pouco. Ufa. De repente, aquela alegria de ver um sujeito na varanda cantando frevos furiosos, que ele ouvia no radinho enquanto fazia chaves. No instante seguinte, no entanto, já estavam atrás de papangus, em Bezerros, sendo depois transformados por Momo em reis de cortes de maracatus, a evoluir em pleno Marco Zero. No sonho, o homem das chaves ia pelos ares como os passistas de frevo e dançava ciranda numa roda grande que não parava de girar em torno do desenho feito por Cícero Dias. João via o mundo … Ele começava no Recife .
Eram dia tão felizes que a dupla até se sentiu abençoada por dona Santa, na Noite dos Tambores Silenciosos, de onde cada um, em sua burrinha, saiu para percorrer os subúrbios com seus blocos famosos – Batutas (de São José), Pás, Lenhadores, Madeira (do Rosarinho), Banhistas (do Pina) – saudosos que já estavam da música cantada pelas orquestras de pau e corda. Que belos os blocos da Saudade, das Ilusões, das Flores…
O raio de sol varou pela fresta da telha e João da chave levantou-se de um pulo só. Já era quinta-feira. Lavou-se com um resto de água, vestiu a roupa de trabalho, tomou café com pão e manteiga no boteco da esquina e se foi sacolejando em um ônibus para Setúbal. Chegou quase às 9h. Abriu a única porta do quiosque apertado, ligou o rádio e se pôs à espera dos fregueses, pensando no sonho tão intenso. Um dia, ainda seria ele a ter a honra de fazer a chave da cidade, aquela que é entregue a Momo quando o rei chega para dar início à folia. Um dia, com certeza.