José Mojica Marins, o lendário Zé do Caixão, vira octagenário e é visto como ícone do cinema brasileiro.
Pedro Siqueira (texto)
Jarbas (arte)
“O que é a vida? É o princípio da morte. O que é a morte? É o fim da existência. O que é a existência? É a continuidade do sangue”. Foi com esse texto que, em novembro de 1964, o cinema brasileiro viu nascer uma das figuras mais icônicas: o coveiro Josefel Zanatas, o Zé do Caixão, em À meia-noite levarei sua alma. Protagonista de filmes, programas de tevê e até marchinhas de carnaval, Zé é uma figura folclórica enraizada no imaginário coletivo do terror brasileiro. Mas o que muitos esquecem é que ele se trata apenas de um único personagem, fruto da mente de um homem cuja filmografia passeia por gêneros tão diversos quanto o faroeste e o pornô: José Mojica Marins, que comemora 80 anos de idade hoje.
Oficialmente, Zé protagoniza uma trilogia iniciada em 1964 com À meia-noite…, seguido por Esta noite encarnarei no teu cadáver (1967) e Encarnação do demônio (2008). Mas, mesmo não aparecendo, a aura do personagem paira sobre parte da filmografia do cineasta. Em Ritual dos sádicos (1970), por exemplo, um cientista realiza experiência alucinógena com um grupo de viciados em drogas, que começa a delirar com visões de Zé.
Em entrevista concedida ao Viver à época da estreia da série biográfica Zé do Caixão (Space), em novembro passado, o ator Matheus Nachtergaele analisou: “Isso é trágico e bonito. É a vitória da fantasia sobre a realidade. Eles se mesclaram e, a partir de um certo momento, Mojica assumiu a identidade do personagem para fazer mídia. Ele proporcionou essa confusão”. Em comemoração aos 80 anos de Mojica, o Space reprisa a série de seis episódios na íntegra a partir das 19h15 de amanhã, seguido pelo longa As fábulas negras, à 0h.
Mojica, curiosamente, nasceu em uma cabalística sexta-feira 13, em 1936. Filho único, morou a infância inteira nos fundos de um cinema gerenciado pelo pai, o toureiro Antônio. Lá, teve o primeiro encontro com a sétima arte, de forma no mínimo inusitada. Em entrevistas ele conta que, aos quatro anos, foi convidado a conhecer a cabine de projeção no dia em que era exibido um filme educativo sobre doenças venéreas femininas. “Quando olho, vejo uma vagina com gonorreia, um troço horroroso”, afirma Mojica.
Nos anos 1950, fez os primeiros longas, incluindo A sina do aventureiro (1958), “o primeiro faroeste brasileiro do Brasil”. O financiamento vinha da venda de cotas para os alunos da escola de atuação. “Mojica foi autodidata. Nunca passou por uma escola de cinema, até porque a formação nem existia na época. Mas o impressionante é que, mesmo com os problemas técnicos, a criatividade dele sempre se sobressai nos filmes. Você pode ver e rever em qualquer época que continua fantástico”, diz o jornalista Osvaldo Neto, de 31 anos, membro do coletivo pernambucano Toca o Terror.
O sucesso de Zé do Caixão, nascido de um pesadelo, no entanto, não trouxe lucro a Mojica. Filmado em pouco mais de uma semana, À meia-noite… foi vendido aos produtores por um preço menor do que os custos de produção. O diretor quase não teve participação nos lucros de bilheteria. Para compensar, Zé do Caixão se tornou figura folclórica, dando nome a uma linha de cosméticos (Mistério), uma cachaça (Marafo Zé do Caixão) e até a uma marchinha no carnaval de 1969, Castelo dos horrores, que está no YouTube.
O cinema transgressor de Zé não passaria impune pela ditadura militar, sobretudo no período seguinte ao Ato Institucional nº 5 (o mais severo no cerceamento às liberdades individuais), de 1968. “Tem filme dele que nem no cinema chegou a passar, na época”, recorda Osvaldo.
O baque mais forte na carreira foi a interdição do já citado Ritual dos sádicos, de 1970. O filme só pôde ser exibido na década seguinte e, ainda assim, sob o título de O despertar da besta – e com cortes nas cenas de drogas. Mojica se tornou um “maldito” da indústria. Investidores se afastavam por medo de mais censura. A má fase resultou em Mojica se tornando um diretor contratado para vários filmes, ou “fitas”, como se refere, de qualidade duvidosa, como D’gajão mata para vingar.
Em 1985, assinou o pornô 24 horas de sexo explícito, que não só trazia “as mulheres mais feias do cinema pornô” como também uma cena de sexo entre uma mulher e o cão pastor alemão Jack. Foi nos anos 1990, quando uma fita VHS de À meia-noite… foi lançada nos EUA, que Mojica recuperou a popularidade. “Coffin Joe”, como ficou conhecido lá fora concluiu a trilogia de Zé do Caixão, em 2008.