11.07

Pernambuco é o único estado do Brasil cujo território foi mutilado em represália por seus ideais políticos.

Vandeck Santiago (texto)
Silvino (arte)

O mês de julho deveria sempre ser lembrado pelos pernambucanos. Em 7 de julho de 1824, o imperador D. Pedro I desmembrou de Pernambuco a Comarca do S. Francisco, uma gigantesca faixa de terra de 173 mil km2, transferida a princípio para Minas Gerais e depois para a Bahia. A medida foi tomada em represália pela Confederação do Equador, revolução com que a então província pernambucana liderou a luta pela República e contra o absolutismo do imperador. Em toda a história do Brasil, nenhum outro estado teve o território mutilado em represália por suas decisões políticas – só Pernambuco, castigado por sonhar com a República 75 anos antes que ela fosse proclamada.
A área do território apartado de Pernambuco equivale ao tamanho atual do Uruguai. Começava em Casa Nova (hoje município da BA), logo após Petrolina, passava pela atual cidade de Barreiras (também baiana, hoje) e ia até Carinhanha, na divisa com Minas Gerais (mapa ao lado). A decisão do imperador visava enfraquecer Pernambuco e impedir que os ideais republicanos e a rebeldia locais “contagiassem” as províncias vizinhas. Nas palavras do próprio D. Pedro, ao justificar a medida: “Salvar meus fiéis súditos do contágio da sedução e impostura, com que o partido demagogo [referindo-se ao governo de Pernambuco] pretende ilaqueá-los”.
Tanto é assim que o decreto do imperador em 1824 anexava a Comarca do S. Francisco ao território de Minas Gerais, geograficamente “dando um pulo” sobre a Bahia, a província que ficava entre MG e Pernambuco. Só três anos depois, em outubro de 1827 (provavelmente porque a possibilidade de “contágio de rebeldia” estava já superada), é que a Comarca foi anexada à Bahia, numa prova de quão artificial era a divisão.
A decisão era para ser “provisória”, porém acabou sendo mantida até os dias de hoje. Vejam trechos do decreto de D. Pedro I:

“Tendo chegado ao meu imperial conhecimento que o intruso presidente de Pernambuco, Manoel de Carvalho Paes de Andrade, que não tem podido seduzir até hoje mais que um punhado de militares e de gente miserável, sem luzes, sem costumes e sem fortuna da cidade do Recife, e de três ou quatro vilas circunvizinhas, procurar levar agora a todos os pontos da província os mesmos embustes e imposturas que temerariamente têm assoalhado (…)
E devendo eu como Imperador e Defensor Perpétuo do Império empregar todos os meios possíveis para manter a integridade dele, e salvar meus fiéis súditos do contágio da sedução e impostura (…)
E considerando quão importante é a bela Comarca denominada do Rio São Francisco, que faz parte da província de Pernambuco [grifo meu] (…)
Hei por bem, com o parecer de meu Conselho D’Estado, ordenar, como por este ordeno, que a dita Comarca do Rio São Francisco seja desligada da Província de Pernambuco e fique deste Decreto em diante pertencendo à Província de Minas Gerais, de cujo presidente receberão as autoridades respectivas as ordens necessárias para o seu governo e administração, provisoriamente [grifo meu] (…)”.

Na prática, o rompante autoritário de D. Pedro criou no Brasil uma geografia artificial e inconstitucional. A inconstitucionalidade do decreto foi estudada por Barbosa Lima Sobrinho, o paladino das causas nacionais, como a anistia (1979) e o impeachment de Fernando Collor (1992). A primeira grande causa dele, porém, foi regional: a defesa dos direitos de Pernambuco sobre a Comarca do S. Francisco. Escreveu dois livros clássicos sobre o assunto: Pernambuco e o São Francisco, de 1919, e A Comarca do Rio São Francisco, de 1950 – nesta ele coletou mais de 200 documentos comprovando sua tese. Segundo Barbosa Lima Sobrinho, a constituição vigente na época (a de 1824) não tinha nenhum preceito que permitisse “a mutilação de uma província em benefício de outra”, a não ser em se tratando de “limites controvertidos”, o que não era o caso, porque não havia dúvidas a respeito do direito de Pernambuco sobre a Comarca.
Em 2007 eu, o fotógrafo Gil Vicente e o motorista Gildo Candeia percorremos o território que pertencia à Comarca – fomos de Casa Nova à Carinhanha, num percurso de 4.146 km. O resultado do trabalho virou a reportagem “Pernambuco não é mais aqui”, publicada de 8 a 12 de julho de 2007, no Diario de Pernambuco. A área engloba o que se chama hoje o Oeste da Bahia, atualmente o principal polo agrícola do Nordeste e o maior produtor de grão da região, detentor da terceira maior renda per capita nordestina (atrás apenas da Bahia e de Pernambuco). Constatamos que por todos os municípios há sinais de não-pertencimento da população, tanto que lá existe um movimento pela criação do Estado do Rio São Francisco. Muitos dos que lá moram não se sentem baianos. Tampouco se sentem pernambucanos. Cerca de 200 anos depois, a impressão de quem viaja por suas terras é que a Comarca do São Francisco ainda não encontrou o seu lugar.