23.10

A frase propaga duas violações de direitos e ainda confere à criança pobre um único destino.

Marcionila Teixeira (texto)
Nando Chiappetta/DP (foto)

Falácia é um raciocínio errado transmitido de forma tão convincente que, às vezes, parece verdadeiro. Qualquer um de nós já propagou, um dia, uma falácia. Nem sempre isso acontece por má intenção. Às vezes é difícil perceber onde está o engano na mensagem. O trabalho infantil, por exemplo, é terreno dos mais férteis para o cultivo de falácias.
Quem diz é o procurador Antônio Oliveira Lima, 48 anos, do Ministério Público do Trabalho do Ceará. Quando criança, ele trabalhou na agropecuária familiar. Não abandonou a escola por causa da intervenção de uma professora. Hoje, Lima milita contra o trabalho infantil. Com muita propriedade, o procurador lista seis frases que, de tão repetidas, parecem fazer sentido. Aprender a identificar mensagens enganosas é um passo para nos comprometermos de verdade com crianças em situação de risco como essa da foto. É ferramenta poderosa de libertação e mudança.
“É melhor trabalhar que roubar” é uma das frases mais repetidas por quem defende o trabalho infantil. Inclusive pessoas com nível cultural elevado, do ponto de vista intelectual, repetem essa fala sem perceber que trabalhar e roubar são, na verdade, duas violações de direitos para uma criança. “Não dá para dizer que existe o melhor entre duas coisas ruins. Também significa dizer que se a criança não trabalha vai ser bandido”, analisa o procurador.
Outra fala comum é: “melhor trabalhar que estar na rua exposto à violência.” Além de remeter a raciocínio semelhante ao da frase anterior – pois apenas troca uma violação de direito por outra – ainda nega o direito da criança de conviver em meio social que deveria ser seguro para ela.
“Eu trabalhei e não morri”. Trata-se de uma frase cruel, na avaliação de Antônio Lima. “Não é preciso matar para representar algo ruim. Quantas crianças terminaram sem membros, como mãos e dedos, em atividades insalubres ou tiveram suas almas e autoestima machucadas? Além disso, se você não morreu, outras pessoas morreram em trabalhos perigosos.”
“Melhor trabalhar e ajudar a família a não passar necessidade.” Nesse tipo de raciocínio, prevalece a inversão de valores. Afinal, família e estado é que são os responsáveis pelo sustento da criança e não o contrário.
“Se a criança trabalha em um horário e estuda em outro, tudo bem.” Tal lógica, no entanto, não aprofunda a problemática do trabalho infantil porque não contextualiza os outros direitos violados. “A educação não é o único direito da criança e, ainda que fosse, está assegurada de forma integral? A criança pode até trabalhar e estudar hoje, porém amanhã pode estar fora da escola porque a evasão escolar de crianças que trabalham é três vezes maior. Afinal elas têm menos tempo de estudo e menor aprendizagem.”
“O trabalho dignifica”. A máxima tomada como uma verdade absoluta não leva em conta que não é todo trabalho que dignifica, alerta Antônio Lopes. “O trabalho escravo e degradante em ambientes insalubres e perigosos, por exemplo, estão aí para provar o contrário. Imagine então uma criança e adolescente trabalhando nessas condições.”
O procurador está à frente da Rede Peteca, que este ano divulgou o Mapa do Trabalho Infantil no Brasil. No país, 2,7 milhões de crianças e adolescentes entre 5 e 17 anos trabalham. Em Pernambuco, são 123.299 pessoas nessas condições, principalmente na agropecuária. Na semana passada, o MPT no estado promoveu um ciclo de capacitação do projeto Resgate a infância. Durante três dias, foram capacitados 500 profissionais, entre professores, conselheiros tutelares e assistentes sociais.
As reflexões do procurador remetem à época da escravidão no Brasil, quando conservadores diziam que não adiantava libertar os escravos porque não haveria emprego para eles. No caminho inverso, estavam os que defendiam a libertação seguida de uma mudança da realidade. O mesmo se dá com os que defendem o trabalho infantil. Alegam que seu fim pode piorar a situação das famílias pobres. Esquecem que lutar pela melhoria das políticas públicas ofertadas a crianças e adolescentes mais vulneráveis pode ser um caminho mais digno e menos perigoso para meninos e meninas.