20.12

 

Onda de protestos em Buenos Aires tentou impedir a aprovação da reforma da Previdência.

Luce Pereira (texto)
Eitan Abramovich/AFP

Enquanto os brasileiros vão às compras de dezembro com gosto, se endividam e esperam a velha corda no pescoço, em janeiro, os argentinos vão às ruas brigar por nenhum direito a menos em relação à Previdência Social. Não é difícil deduzir quem está no lugar errado. No entanto, há sempre os mais conscientes a olhar para o gesto do povo vizinho com certa “inveja branca”, como se diz sempre que algo bom ou admirável acontece a pessoas merecedoras. Habituamo-nos a detestar a ideia de sentir a tal inveja pelos hermanos quando o assunto é futebol, pois mesmo amargando aquele histórico e excessivamente humilhante 7 x 1 da seleção alemã, em Belo Horizonte, na Copa de 2014, seguimos de nariz empinado, sem prescindir do salto nas alturas (e, óbvio, a propaganda continua sendo de superação rumo à excelência). Contudo, quando a bola rola no terreno dos direitos adquiridos, eles ganham com placar ainda mais elástico do que o decretado naquele fatídico 8 de julho. Para tentar impedir a reforma proposta pelo presidente Mauricio Macri, reduzindo, sobretudo, a faixa de reajuste dos proventos de 14% para pouco mais de 5%, cerca de 300 mil preferiram o confronto com a polícia nas ruas ao sofá na frente da TV. Foi-se o tempo em que, diante de um claro sinal de alerta, trocávamos depressa o controle remoto por um protesto.
Perdemos o jeito, a esperança ou os motivos são tantos – multiplicando-se feito aliens de filmes de ficção científica – que nem sabemos por onde começar o combate? Nenhuma teoria plausível nasceu para explicar a apatia do povo brasileiro diante da barbárie política instalada no país, algo como se houvessem obstruído, nos habitantes, o mais imprescindível dos circuitos cerebrais – o da ação. Talvez por isso tenha sido tão fácil, quando começou a onda de protestos na Argentina, última quinta-feira, obrigando os parlamentares a adiar a votação do projeto de reforma da Previdência, a propagação de uma notícia não confirmada por qualquer veículo de comunicação ou mesmo nas redes sociais – de que os manifestantes estariam gritando, enquanto caminhavam, “Isto aqui não é Brasil” . Boato, portanto. Mas significa apenas, independentemente do uso da frase nas manifestações em Buenos Aires, ou não, que dissemina-se (ou tenta-se) a ideia de um Brasil no qual o povo virou massa de manobra – não pensa, não fala, não reage.
Desde a semana passada Buenos Aires transformou-se em praça de guerra, obrigando os parlamentares a adiar, para esta segunda-feira, a votação do projeto. Era a decretação do dezembro de fúria. O povo voltou às ruas e reagiu com energia, sem, no entanto, conseguir evitar o desfecho pró-governo, pois o presidente Macri, longe de fugir à regra, usou o expediente dos favorecimentos para fazer passar a reforma. Não parece, contudo, uma derrota, pois persiste a ideia de que a luta é tão valorosa quanto a vitória. O exemplo serve para mostrar aos vizinhos que, na Argentina, nada que atente contra os interesses do povo passa assim tão facilmente. Basta lembrar que o presidente Fernando de la Rúa renunciou em 2001, exatamente num dia como hoje, depois de não resistir a uma das piores ondas de protesto da história do país. Pois, então: se nos gramados insistimos numa superioridade que não consegue se sustentar nas pernas, copa após copa, ao menos fora deles poderíamos olhar os argentinos com outros olhos, porque é outro o jogo que eles querem ganhar. Não nos enganemos. Sabiamente.