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Em 1919, uma partida entre o América (campeão pernambucano do ano anterior) e o Botafogo do Rio de Janeiro, no campo da Avenida Malaquias, virou uma disputa sangrenta. Dois jogadores do alvinegro carioca chegaram a ser internados depois de atingidos no joelho e na nuca. O episódio reverberou na imprensa carioca e foi decisivo para o escritor e jornalista Lima Barreto se insurgir contra um esporte que incitava o ódio e o racismo, além de desperdiçar o dinheiro público. Quase cem anos depois, a Liga Contra o Football, criada pelo mulato, filho de escravos, cuja tentativa de entrar na Academia Brasileira de Letras bateu por três vezes na trave, seria mais um episódio curioso de nossa literatura não fosse a visão de Barreto, autor que precisa ser redescoberto. Nesta contagem regressiva para a Copa do Mundo, o país só vai falar nisso, só vai pensar nisso. Por isso que no Em Foco – vitrine para as ideias no novo projeto editorial do Diario – desta terça-feira resolvi dar tratos à bola e mandar na área para o leitor usar a cabeça, tabelinha que sempre funciona.

Uma nova Liga Contra o Football

Episódio ocorrido no Recife fez o escritor Lima Barreto se insurgir contra um esporte que só gerava brigas e desperdício do dinheiro público

paulo goethe
paulogoethe.pe@dabr.com.br

Em 1919, Afonso Henriques de Lima Barreto decidiu encabeçar uma cruzada contra “um jogo de pés que concorre para a animosidade e a malquerença entre os filhos de uma mesma nação”. Fundou a Liga Contra o Football, esporte que, para ele, intelectual mulato que defendia uma sociedade brasileira sem copiar os modelos europeus, longe de contribuir para o congraçamento, separava as pessoas e os estados da nação.
A ideia surgiu depois que, em tratamento no Hospital do Exército no Rio de Janeiro, passou a ler os jornais do início ao fim, todas as seções, “inclusive as esportivas, que são as únicas enfatuadas e enfáticas”. Barreto viu que, no futebol, a animosidade reinava mais que o espírito esportivo. Quase cem anos depois, a Copa do Mundo no Brasil mostra que o escritor e jornalista pode ter perdido o jogo, mas marcou os seus golaços. O futebol é uma paixão nacional, movimenta bilhões de reais, mas as preocupações do autor de Recordações do escrivão Isaías Caminha continuam bem atuais.
No seu livro póstumo Diário íntimo, reproduz-se entrevista que Lima Barreto concedeu ao jornal Rio-Jornal, em 13 de março de 1919, onde explicava as razões para se insurgir contra o futebol. E o Recife teve participação decisiva nisto. Ele já havia publicado artigos no jornal A.B.C. criticando o esporte, “mas a coisa não seria tão importante, se nestes últimos dias, realizando-se no Recife, um match entre um club de lá e um daqui, não se repetissem as chufas, as vaias e os rolos”. O jogo em questão foi América (campeão pernambucano de 1918) versus Botafogo (alvinegro carioca que fazia uma temporada no Recife, onde venceu quatro dos seis jogos que disputou). Uma das duas derrotas dos visitantes (placar de 2 a 0 para os alviverdes), o match realizado no dia 2 de fevereiro de 1919, no campo da Avenida Malaquias, foi uma verdadeira peleja. Dois jogadores do Botafogo, João Candiota e Francisco Police, saíram de campo depois de serem atingidos violentamente no joelho e na nuca, respectivamente. Como não havia substituições, os gols vieram na sequência. Na reportagem publicada na capa do Diario de Pernambuco do dia seguinte, já na seção diária com o sugestivo nome de Sport, o redator assinalava que o jogo tomou feição violenta, tornando-se “menos apreciável” depois dos dois “acidentes lamentáveis”.
A imprensa do Rio de Janeiro deve ter colocado mais lenha na fogueira, mas para Lima Barreto já bastava. Futebol era barbárie. E nem o romancista que era, nem o crítico sarcástico (recomendo a leitura de Os Bruzundangas para isso) poderia prever que no século 21 torcidas organizadas seriam criadas para provocar conflitos e assassinar adversários.
A rejeição de Lima Barreto ao futebol não se limitava apenas ao que acontecia dentro de campo e nas arquibancadas (seis anos antes do escritor criticar a violência do esporte, o América do Rio de Janeiro já instituía o cordão de isolamento para separar torcidas adversárias). Ele também não aceitava que o dinheiro público servisse para algo que não contribuísse para o verdadeiro desenvolvimento nacional. “Nenhum de nós está disposto a admitir que o Brasil pague impostos, para o governo obter dinheiro e ele venha a dar um pouco desse dinheiro à sociedade dos que cavam a separação, não só das divisões políticas da nação, mas entre os próprios indivíduos desta nação. Você pode dizer que nós não estamos dispostos a consentir que se forme, à custa dos contribuintes, uma aristocracia que se baseia nas habilidades dos pés”. Seria hoje Lima um black bloc, escreveria sobre os protestos pelo padrão Fifa na infraestrutura nacional?
Lima Barreto se insurgia contra o futebol porque, na época, era um esporte racista, onde os negros não podiam jogar. Esta questão voltou à tona no Brasil e na Europa, com jogadores negros – ou mestiços como ele – insultados em forma de palavras, gestos ou bananas. Acredito que ele ficaria furibundo com aquela campanha “Somos todos macacos”. Na sua época, já abria fogo contra o que considerava uma das manias mais curiosas de nossa mentalidade: o caboclismo. “Quando um sujeito se quer fazer nobre, diz-se caboclo ou descendente de caboclo”. Para ele, não existiam caboclos ou macacos, existiam brasileiros.
A crença de Barreto no Brasil não vinha da sociedade idealizada a partir dos modelos europeus. O país formaria a sua personalidade nos subúrbios, onde uma rede de relacionamentos solidários surgiria além do aparente caos da precariedade. Filho de escravos, preterido três vezes pela Academia Brasileira de Letras, o escritor morreu em 1º de novembro de 1922, aos 41 anos. Neste simbólico 13 de maio, faltando um mês para a maior festa do futebol, Lima Barreto continua um craque.