Grupo Nexto

A vida entra em cena

Violência contra mulheres e a dura realidade do sistema prisional são temas que grupo pernambuco trabalha inspirado em Boal

“Não sei se o teatro tem a função de salvar alguém. O que eu sei é que ele liberta”. Com essa frase, a atriz e pesquisadora Andrea Veruska resume o potencial que o Teatro do Oprimido tem de levar à reflexão e, a partir daí, transformar vidas. As técnicas criadas pelo teatrólogo Augusto Boal (1931- 2008) foram a matriz que ela e o ator e cientista social Wagner Montenegro adotaram para criar, em 2012, o Núcleo de Experimentações em Teatro do Oprimido – NEXTO. Este é, atualmente, o único grupo profissional do Recife que trabalha apenas com o legado deixado pelo artista. A violência contra a mulher e, mais recentemente, o sistema carcerário são os temas que a dupla passou a estudar mais profundamente, seja por meio de intercâmbios, performances ou espetáculos. Além disso, o coletivo faz oficinas para multiplicar o conhecimento alcançado em anos de prática. “Em outros tipos de teatro, se abordam esses temas e até se criam diálogos com relação a isso, mas o Teatro do Oprimido busca a ação concreta. Essa característica de engajamento é muito forte”, frisa Wagner.

Foto: Paulo Paiva/DP

Foto: Paulo Paiva/DP

Os dois passaram o mês de agosto nos Estados Unidos para fazer um intercâmbio com o Phoenix Players Theatre Group (PPTG), grupo de teatro composto por oito detentos da prisão de segurança máxima de Auburn, em Nova York. A dupla foi chamada para dar uma capacitação em Teatro do Oprimido, fazendo atividades tanto com os presos quanto com os facilitadores do grupo, estudantes e professores de várias áreas da Universidade de Cornell e do Ithaca Colege, duas renomadas instituições de ensino norte-americanas.

“Nunca tínhamos feito esse trabalho em uma cadeia. Trabalhávamos com os presos durante duas horas e meia, mas passávamos mais de cinco horas da chegada até a saída, por conta das normas de segurança. Não podíamos usar verde, pois era a cor dos detentos. Se houvesse uma rebelião, a polícia atiraria em nós. Era o protocolo”, lembra Wagner.

Os integrantes do NEXTO se encontravam com os presos às sextas, no turno da noite, e realizavam principalmente exercícios de improvisação baseados na sistematização feita por Boal. Os detentos – muitos deles condenados a penas pesadas ou à prisão perpétua – adotaram o teatro como ferramenta para experimentar, de alguma forma, uma liberdade que deixaram de ter. “Eles cometeram erros gravíssimos e estão cumprindo sua pena, mas não podem deixar de serem vistos como seres humanos. Eles não têm um olhar romantizado sobre seus crimes, mas a ideia de transformação é muito forte, porque eles conseguem ver a vida deles com outra perspectiva”, avaliam Wagner e Andrea”.

A presença do teatro na prisão de Auburn ajudou a modificar um ambiente que foi,um dia, símbolo do rigor do sistema prisional norte-americano. Na penitenciária, os presos eram proibidos de se comunicar entre si e obrigados a ficar em silêncio, o que levou a um alto índice de suicídios e loucura. “Não há afetividade nesse cotidiano, mas, quando os integrantes do grupo entravam na sala de ensaios, tiravam a ‘máscara’ de detentos. Até o corpo sofria uma transformação e os exercícios que a gente propunha também tinham o objetivo de desmecanizar seus movimentos. Não queríamos saber como eles tinham ido parar lá, só o que o Teatro do Oprimido tinha a oferecer. Os presos falaram sobre histórias muito pessoais, algumas delas nunca ditas antes. Em uma delas, o pai de um detento contou a ele que era adotado e fruto da traição da mãe com outra pessoa. Em outra, um preso lembrava o quanto ele e a mãe eram motivo de chacota pelo fato dela ser surda”.

As histórias de violência contra a mulher ouvidas durante as também foram abordadas pelo NEXTO por meio do espetáculo Las mariposas, cuja estreia aconteceu no ano passado. Como parte da pesquisa para a montagem da peça, fizeram a intervenção urbana A coleira. Na performance,Wagner pôs uma coleira de metal no pescoço de Andrea e andou com ela a tiracolo pelo centro do Recife e pela Avenida Boa Viagem. “Usamos o Teatro Invisível, uma das técnicas do Teatro do Oprimido. Colocamos uma situação de opressão em um momento do cotidiano das pessoas e ninguém poderia saber se aquilo era teatro para não perder a espontaneidade. Começamos empolgados, as, no meio do caminho, comecei a tremer por causa das ameaças recebidas por mim e por Andrea. Era muito comum as pessoas xingarem de todos os nomes possíveis, dizendo que ela merecia ficar assim, ou tentar ‘salvá-la’, dizendo que iam colocar uma coleira em mim, querendo resolver uma situação violenta com mais violência. As crianças eram as únicas a compreender o absurdo da situação e diziam para eu parar”.

Por que tão pouco Teatro do Oprimido? Personagem do mundo

Wagner Montenegro e Andrea Veruska acreditam no poder da arte espontânea - Foto: Paulo Paiva/DP

Wagner Montenegro e Andrea Veruska acreditam no poder da arte espontânea – Foto: Paulo Paiva/DP

Andrea e Wagner se conheceram em um grupo de teatro, extinto em 2008, chamado Pressão no Juízo. Fundado por Claudio Rocha, radicado atualmente em Natal e coringa regional do Centro de Teatro do Oprimido, o coletivo atuou ao longo dos anos 2000, momento no qual houve um florescimento do Teatro do Oprimido em Pernambuco. Hoje, a situação é bem diferente. “Enfrentamos todas as resistências imagináveis. Em primeiro lugar, é muito difícil encontrar fontes de financiamento. Há muito poucas condições para os multiplicadores se manterem. Só muito recentemente esse conjunto de técnicas passou a ser mais bem visto nas universidades. Elas eram adotadas no mundo inteiro, mas o reconhecimento de Boal no Brasil só deslanchou mesmo após sua morte. Além disso, o teatro sempre foi usado pelas classes dominantes para veicular suas ideias. Quando Boal diz que o teatro é de todos, atores e não-atores, isso causa um mal-estar. Não é um tipo de arte no qual as pessoas vão pedir autógrafos”.

A sensação de desconhecimento e preconceito com relação ao Teatro do Oprimido também é compartilhada pelo NEXTO. “Temos a ideia de fazermos um trabalho específico na Colônia Penal Feminina do Recife, mas é tudo muito difícil. As pessoas não dão importância ao trabalho com teatro nessas situações. Gostaríamos de trabalhar lá no próximo ano, mas há um abismo muito grande entre desejo e realidade”, afirma Andrea. “Quando estávamos nos Estados Unidos, dei uma oficina para alunos e professores do Ithaca College e me sentia praticamente uma celebridade. As pessoas nos procuravam para trocar ideias”, constata Wagner.

[ Phoenix Players Theatre Group

O grupo foi criado em 2008 pelos detentos da Penitenciária de Segurança Máxima de Auburn e usa as experiências de vida dos detentos para realizar espetáculos e trabalhar a cidadania deles. Até agora, o coletivo montou três espetáculos: Inside/Out (2011), Maximum will (2012), An indetermined life (2014) e This incarcerated life: The foundation of a Pipe Dream (2016). São os próprios detentos que escolhem quem vai entrar no grupo. Os futuros integrantes precisam ter bom comportamento e participam de entrevistas e de uma oficina antes de serem aceitos.

Agradecimento: Casa da Cultura do Recife

[ Boal e o cárcere

O Teatro do Oprimido nas Prisões foi uma das vertentes desenvolvidas por Boal entre 1998 e 2006, quando o Centro do Teatro do Oprimido, localizado no Rio de Janeiro, desenvolveu um projeto com os servidores do sistema prisional brasileiro para multiplicar os princípios desse teatro e transforma a realidade desse ambiente.

Site oficial do NEXTO – www.nextope.com

Site do Phoenix Players Theatre Group (em inglês) – www.phoenixplayersatauburn.com