Grupo Fábrica

Eles são TEATRO

Quem antes levantava a mão para condenar é convidado hoje a aplaudir os atores que dedicaram as suas vidas à redenção no palco, de acordo com os preceitos de Boal

Genivaldo Francisco (ao centro) e seis dos sete atores do Bando de Teatro Eu Já Disse Tudo, do grupo Fábrica - Foto: Teresa Maia/DP

Genivaldo Francisco (ao centro) e seis dos sete atores do Bando de Teatro Eu Já Disse Tudo, do grupo Fábrica – Foto: Teresa Maia/DP

Cortinas abertas. Cartase. “Augusto Boal? Conheço não, mas já fiquei até curiosa para conhecer.” A resposta veio de Rafaela Martins, quando confrontada com o nome do teatrólogo brasileiro. “Opressão? Acho que opressão é preconceito… é tudo o que te bota para baixo, não te deixa respirar”, disse, novamente indagada, a jovem negra de cabelos longos, agora séria, com a voz firme de quem já se sentiu assim. O jogo de palavras segue. Desta vez teatro, o que significa teatro? Ela sorri. “Teatro é vida. É muito bom, né?! O teatro me transformou.” O diálogo foi verdadeiro, mas pedimos licença à ficção para acrescentar que ali, no palco emprestado para esta conversar, talvez no canto da plateia vazia, olhos de Boal sorriam ao ouvir a jovem atriz do Fábrica, um dia presa por tráfico, sintetizar a alma do Teatro do Oprimido. Assim começa o último capítulo da nossa série Boal Vivo.


Rafaela integra o elenco principal da peça Os 7 crack, encenada pelo Bando de Teatro a Gente Já disse Tudo, grupo do projeto Fábrica. O espetáculo joga com técnicas do Teatro do Oprimido, sistematizado pelo dramaturgo e diretor Augusto Boal, entre elas, a levar para o palco pessoas que antes eram apenas espectadores. “Eu fiz algumas formações em Teatro do Oprimido, algumas oficinas e tento aplicar isso com os meninos. Nos 7 Cracks eles levam para cena as histórias deles, eu faço o papel de mediador junto à plateia e surgem as surpresas”, comentou o arte-educador e diretor da peça, Genivaldo Francisco. O trabalho tem foco na redução de danos e as temáticas giram em torno da violência urbana. A peça foi inspirada na história de Ismael, um jovem de Santo Amaro, usuário de drogas. Certo dia, Ismael assistiu uma peça feita pelo Fábrica. Apaixonou-se. Queria fazer teatro. Procurou Genivaldo e ficou acertado que ele participaria encontro seguinte. No dia do ensaio, porém, Ismael não apareceu. Foi morto a pedradas horas antes por dívidas do passado.

“Sabe o que ser aplaudido num palco? É bom demais. Antes só levantavam a mão para acusar. Agora é aplauso. Acho que entrei nas drogas porque não me amava. O teatro ensinou a eu me amar”, disse emocionado o colega de Rafaela e ator do Fábrica, Pedro Carneiro. Ele também esteve preso. Tinha entrado no mundo do crime para alimentar o vício de crack. Foi através do Fábrica que, pela primeira vez, Pedro entrou em um teatro, diferente de Gigi Abagagerry, para quem o Fábrica permitiu o reencontro com uma vocação esquecida. “O teatro me ajudou a ir construindo a minha cidadania. Quando era adolescente, era pelo teatro que eu conseguia colocar para fora quem eu era”, contou a jovem que foi a primeira transexual do grupo. O nome, tomado do primeiro personagem que interpretou, é hoje o da identidade dela. Gigi começou a fazer teatro adolescente, mas afastou-se por causa das drogas. Hoje aprende com os personagens que cria a tirar suas máscaras dentro e fora da cena.

Ao colocar em fórmulas e técnicas o Teatro do Oprimido, Augusto Boal buscar ir além do teatro conscientizador proposto pelo dramaturgo alemão Bertolt Brecht, que buscava uma plateia crítica a partir da cena, mas não em cena. Ao subirem no palco e se apropriarem da linguagem teatral, projetando suas vidas e dialogando com os espectadores, os jovens do Fábrica, ainda que sem sem o aprofundamento teórico de outros profissionais, fazem na prática, o que Boal pretendeu em vida. Uma vez protagonistas do espetáculo, aprendem o protagonismo de si e fazem isso, porém, não como amadores, mas preocupados com o resultado estético e a qualidade, mesmo que dentro de suas limitações. Tanto assim que uma das maiores emoções que lembram é a do dia em que pisaram no Santa Isabel. O espaço mais recorrente do Fábrica, porém, ainda é o Teatro Hermilo Borba Filho, onde eles se sentem em casa e que, mais uma ligação, permite variação para a plateia em círculo, típica do teatro Arena, formato onde o dramaturgo consolidou-se como diretor.

Nova peça é dedicada a Ismael, morador de Santo Amaro que foi morto a pedradas no dia do seu primeiro ensaio

[ Personagens

“Eu fui usuário de crack, morei na rua, fui preso. Acho que antes eu não me amava, não sentia nada por mim. Depois que comecei nesse projeto foi que consegui mudar minha vida”, fala o jovem Pedro Carneiro. O Fábrica apresentou o teatro a Pedro, mas também mostrou caminhos para ele trabalhar com educação social, algo que deseja seguir para o resto da vida. Junto com Flávio passou a visitar jovens para alertar sobre o risco das drogas. Conta que a encenação mais difícil que fez no Fábrica foi quando o grupo, em uma intervenção usando o método do Teatro do Invisível, foi para a rua fantasiado de mendigo pendido abraços. A gente via as pessoas lá, com um discurso de cuidado, mas ninguém queria chegar nem perto. Doeu”.

Pedro Carneiro

ator, 23 anos

Segurar o choro foi difícil quando falou do passado. A palavra teatro, ao contrário, fez Bruninho sorrir. “Teatro é tudo. É muito bom entrar no palco e fazer teatro.” Transexual, em cena Bruninho aprendeu a construir a própria identidade, ao mesmo tempo em que vencia o vício das drogas. Ele tinha 12 anos quando ainda era Natália e a mando do pai, deu “a primeira puxada”. “Ele me mandou sentar num canto e puxar. Viciei. Depois, para manter o crack tive que traficar só que nem chegava a vender, usava a maior parte. Um dia o dono da boca chegou lá em casa cobrando a dívida e Genivaldo foi lá. Foi ele que me tirou de lá”, lembra com olhos baixos. Ao chegar no Fábrica, a surpresa. “Todo mundo me acolheu. Lembro até hoje a data de quando parei de usar o crack. Faz mais de um ano.”.

Bruninho

ator, 26 anos

Ela chegou ao Fábrica em situação de rua. Encantou-se com o teatro. Na hora dos ensaios estava sempre lá, mesmo sabendo que ao terminar voltaria para a Ponte do Limoeiro, que lhe emprestava o teto. Roupas e alguns pertences ficavam guardados no canto da sala onde o grupo se reunia, até ela que ela conseguisse um aluguel social. “Eu quero interpretar mulheres fortes. A Íris é uma leoa.” No teatro, Íris aprendeu a revisitar o passado de outra forma. “Meu pai abusou de mim e de minha irmã. Eu tinha cinco a nos, ela três. Foi punk pra mim. Ainda é, mas hoje eu consigo falar disso”. A cena mais difícil para ela fazer no Fábrica, porém, foi em um dos espetáculos dos 7 Cracks no qual revelou, em palco, que era soropositivo. Precisou ser forte.

Irís Márcia

atriz, 32 anos

Gigi Abagagerry mora em Araçoiaba e trabalha em Recife. Sai de casa todo dia às 3h30 da manhã e trabalha o dia todo. Nunca, porém, descuidou dos ensaios, nem mesmo quando ainda era moradora de rua e precisava se prostituir para sobreviver. A força que leva para cena é a de alguém que aprendeu a assumir própria sexualidade. Gigi é trans, assim como o personagem Luana, criado por ela. “Levo para cena a minha vida e me dou para o personagem. O primeiro que fiz aqui no Fábrica era Luana, um garoto que fugia e reaparecia como Luana. Quando criei ele fiz uma retrospectiva da minha vida. Luana queria ser advogada e não cabeleireira, como todo mundo acha que trans deve ser. A vida dela é para acabar com estigmas. Eu quebro esse tabu todo dia”.

Gigi Abagagerry

atriz, 31 anos

Mesmo nunca tendo consumido drogas, Rafaela Martins sentiu a dor do vício quando viu o marido envolvido com o crack. Antes disso, ela traficava. “O crack entrou na minha vida na forma de dinheiro. Fui presa, mas também vi o que uma família sobre quando meu marido começou a usar crack. Hoje eu vejo que destruí muitas famílias, mas Deus é justo e me colocou nesse projeto para
pagar aquele pecado. Hoje estou aqui tentando ajudar muitas daquelas famílias que acho que ajudei um pouco a destruir”, sintetizou.

Rafaela Martins

atriz, 26 anos

“Entra em cena era um sonho de infância. Hoje é uma superação estar no palco e poder usar minha experiência como ex-usuário de crack para falar das drogas. Aqui a gente trabalha com a realidade, mesmo quando falamos da história de outra pessoa. Todo mundo que está aqui conhece de perto o que é sofrimento e opressão, por isso fica mais fácil fazermos nossos personagens”, contou o jovem que após anos no vício  do crack, tornou-se ator e coordenador de prevenção da Secretaria de Enfrentamento ao Crack do Recife. Hoje, pai de quatro filhos afirma orgulhoso que aprendeu a ser protagonista da própria vida.

Flávio Selva

atriz, 29 anos

[ Ficha técnica Os 7 cracks
Grupo Fábrica acredita em teatro pra cidadania - Foto: Teresa Maia/DP

Grupo Fábrica acredita em teatro pra cidadania – Foto: Teresa Maia/DP

Dramaturgia e direção geral: Genivaldo Francisco, Pricila Freitas e Rodolfo Lima
Produção: Marcelo Vieira, Pricila Freitas e Rodrigo Gomes
Sonoplastia: Rodolfo Lima
Assistente de palco: Marcelo Vieira e Pricila Freitas
Figurino e Adereço: César Satto
Maquiagem: Pricila Freitas
Preparação Vocal: Andreza Cavalcanti;
Criação de Cenário: Fábio Martins
Acompanhamento Psicossocial: Tatiana Ranzani Maurano
Acompanhamento Pedagógico: Roseane Freitas
Elenco: Angélica Silva, Flávio Selva, Gigi Abagagerry, Íris Márcia, Natália Bruninho, Pedro Carneiro e Rafaela Martins.

Agradecemos ao Teatro Hermilo Borba Filho por ter cedido o espaço