Leonardo Bezerra, líder na guerra dos mascates

Maior provocador das “alterações” de 1710, seria adiante chamado de “o primeiro pernambucano livre”

Arte: Jarbas/DP

Leonardo Cavalcanti de Albuquerque Bezerra era o pernambucano que mais odiava os portugueses. “Ser filho do Reino basta para ser velhaco”, ele costumava dizer em alto e bom som, em qualquer lugar, sem se importar com quem estivesse ouvindo. Já de idade madura, entre suas façanhas ao longo da vida, uma se destacava: fora preso por três governadores lusos. Câmara Coutinho o detivera, em 1690, por ter se negado a emprestar escravos para as obras do Forte do Brum.

Caetano de Melo, em 1695, por ter sacado a espada e desafiado o comandante da frota anual, que fazia a “carreira” entre Recife e Lisboa. Sebastião de Castro, em 1708, após desavenças em torno da cobrança de dízimos. E, de novo, em 1710, por conspirar contra o governo.

Sebastião de Castro, porém, arrependera-se de tê-lo prendido outra vez. Pouco depois fora emboscado, quase perdendo a vida. E, devido à rebelião ocorrida a seguir, puxada pelas famílias Bezerra e Cavalcanti, tivera de fugir para a Bahia. Então, Leonardo e outros “principais” da terra tentaram implantar aqui uma república à moda veneziana, governada pelos ricos. A maioria, contudo, preferira entregar o governo ao bispo D. Manoel Álvares e buscar um acordo com o rei.

A resposta de Lisboa demorara um ano, durante o qual houvera muita luta entre pernambucanos e portugueses. Então, o novo capitão-mor, Felix Machado, chegara, em outubro de 1711, trazendo perdão geral e propondo paz e conciliação. Mas era tudo falsidade dele. E já em fevereiro de 1712 Leonardo era preso pelo quarto governador, sucessivamente…

RANCOR DE NOBRE

Esse grande agitador era membro de duas antigas famílias da capitania, descendentes da aristocracia lusa: os Bezerra e os Cavalcanti de Albuquerque. E tinha quatro irmãos que comandavam milícias civis e eram vereadores nas câmaras de Olinda e Goiana. Contudo, não possuía grande fortuna, nem casara com mulher rica. Ele e seus familiares plantavam cana, criavam gado e negociavam com arrecadação de impostos, para ganhar a vida. E a raiz da sua ira contra os portugueses estava justamente ali: para quem se ufanava tanto da sua nobreza, era vergonhoso ter de barganhar e, pior, ser miseravelmente explorado por gente “de categoria inferior”.

O problema em Pernambuco, na opinião de Leonardo e de outros nobres, era que, desde a expulsão dos holandeses, passara a chegar aqui uma legião de portugueses miseráveis. Esses sujeitos, quando não eram bêbados contumazes, recebiam fazendas (objetos diversos) dos seus patrícios comerciantes, para mascatear de porta em porta. E logo enricavam, abriam lojas no Recife e traziam seus parentes para trabalhar como caixeiros. Alguns até viravam mercadores de sobrado (capitalistas).

A vantagem deles residia em serem os únicos autorizados a exportar e a importar mercadorias – principalmente, alimentos, porque aqui só se plantava cana – e a financiar os agricultores. Ao final de cada safra, os senhores de engenho estavam sempre lhes devendo somas consideráveis, cobradas em dobro, no ano seguinte. Ou, então, entregavam seu açúcar a 400 réis por arroba, remetida para Lisboa por 1.400. E, não satisfeitos, esses estrangeiros passaram a subornar os governadores para ocupar os cargos públicos mais lucrativos – um privilégio exclusivo dos filhos da terra, segundo a lei vigente.

ORGULHO DE MASCATE

Os mascates, por sua vez, se diziam odiados pelo povo da terra porque enriqueciam trabalhando muito e economizando ainda mais, enquanto os brasileiros eram preguiçosos e esbanjadores. Além disso, se eles possuíam “defeito mecânico”, porque usavam as mãos no seu trabalho, os nobres “pés-rapados” também possuíam “defeito de sangue”, por terem parentesco com os judeus vindos para cá, no passado E assim também eram desqualificados para os “ofícios de honra”, como os cargos de juiz e tabelião. O senhor Felipe Paes Barreto, de um dos clãs mais ricos e tradicionais de Pernambuco, não fora impedido de receber a Ordem de Cristo porque sua avó materna era judia?

Então, em 1710, caíra a gota que faltava para fazer o ódio transbordar: chegara o esperado decreto elevando o Recife, onde viviam os portugueses, à categoria de vila. A partir daí, com a sua própria câmara de vereadores e não mais submetidos à Câmara de Olinda, dominada pelos nobres, os mascates teriam maior poder político e controle sobre o dinheiro dos impostos.

Revoltadíssimos, Leonardo, seu irmão Manoel e seu filho Cosme foram os que mais protestaram. “Ou aquele ato era revogado”, ameaçaram eles, “ou havia de acabar-se o mundo”. E por isso foram presos; sofrendo, inclusive, a humilhação de serem postos a ferros, como escravos.

Aí o circo pegara fogo de vez.

Desterrado para a Ásia e ainda rebelde

Foram vários os tiros disparados contra Sebastião de Castro, que escapara por um triz, por três cabras com os rostos pintados de preto. E a devassa do crime concluíra que, sem dúvida, Leonardo “mandara da prisão em que estava atirar à espingarda ao dito governador”. Então, dois parentes dele, os capitães das freguesias de São Lourenço e de Santo Antão, ameaçados de também serem presos, pegaram em armas. E quando derrotaram as tropas enviadas do Recife para detê-los, amotinara-se quase todo Pernambuco.

Na sequência, veio a fuga de Sebastião de Castro; a proposta frustrada de implantação de uma república; e o governo interino do bispo D. Manoel, contra o qual os portugueses também se revoltaram, em junho de 1711. E a luta prosseguiu até outubro, com o cerco do Recife pelos nobres e muitos enfrentamentos no interior, até a chegada do novo governador, Felix Machado.

Trazendo um perdão geral e agindo equilibradamente, de início, Felix ganhou a confiança dos pernambucanos. Para, já em fevereiro de 1712, começar a prender centenas deles, pondo-os a ferros, como se fossem escravos fugidos, além de sequestrar seus bens e despachar os líderes do levante para Lisboa. Inclusive, Leonardo Bezerra – detido pela quinta vez –, junto com seu filho Cosme.

Vários, como Bernardo Vieira de Melo e seu filho André, morreram na prisão, até que os sobreviventes foram finalmente julgados e anistiados, em 1718. Menos Leonardo e Leão Falcão, desterrados perpetuamente para Goa, na Índia, como os principais cabeças das alterações, ainda vivos.

De lá, contudo, os dois tentaram voltar clandestinamente para o Brasil, tendo Falcão morrido na viagem. Já Leonardo conseguiu chegar até Salvador, onde o prenderam pela sexta vez. Mas, por intercessão de um parente poderoso, ele foi solto, alegando estar cego e sob a condição de jamais voltar para sua terra.

Seu ato final de rebeldia foi uma carta enviada aos pernambucanos, recomendando que não cortassem um só quiri (madeira muito resistente) das matas. Para, mais adiante, quebrá-los todos nas costas dos portugueses.

Olinda X Recife

Noves fora a política, o Recife merecia o título de vila, em 1710. Possuía entre doze e quinze mil habitantes, um grande casario assobradado, muitas igrejas e conventos. Ao passo que Olinda – que já fora “Cabeça do Brasil” e ainda era, legalmente, a sede do governo e do bispado, em Pernambuco – tinha pouco mais de duas mil almas, todas pobríssimas. Os nobres já não podiam dar-se ao luxo de manter uma casa lá e outra no campo. E a igreja da Sé, antigamente suntuosa, toda revestida de mármore, estava coberta de mato.

Nobres X mascates

Nos primeiros cem anos de Pernambuco, a produção de açúcar era financiada pelos os judeus portugueses da Holanda, os negociantes lusos tinham lojas na parte baixa de Olinda, os nobres moravam na alta, e a harmonia reinava entre todos. Tal e qual em Salvador. Então, vieram os holandeses, que não só monopolizaram o comércio como afastaram fisicamente as duas categorias. Os comerciantes concentraram-se no Recife, após o incêndio de Olinda, enquanto os produtores foram para seus engenhos, no interior. E, após a Restauração, em 1654, os mascates assumiram o lugar dos flamengos, açambarcando os negócios e entrando num feroz conflito com os nobres.

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