Padre João Ribeiro, um brasileiro exemplar

Respeitado pelos ricos e amado pelos pobres, ele foi o líder moral da chamada “revolução dos padres”

Como todos, no Recife, o padre João foi pego de surpresa pelos extraordinários eventos do dia seis de março de 1817. Ao saber que o governador português Caetano Pinto ordenara a detenção de vários membros da maçonaria, acusados de conspirar secretamente pela independência do seu país, ele se pôs a rezar, enquanto esperava que viessem buscá-lo, também. Mas o inesperado aconteceu.

No quartel do Regimento de Artilharia, o valente capitão José de Barros Lima, conhecido como “Leão Coroado”, não acatou a voz de prisão dada pelo seu comandante, o brigadeiro Manoel Barbosa. Em vez disso, sacou a espada e o matou. Então, os outros oficiais brasileiros também se rebelaram; o povo pobre da cidade os apoiou; e a revolução programada para começar na Semana Santa, no próximo mês de abril, nasceu prematuramente.

Nos dias seguintes tudo era prazer, tudo era alegria, com a massa festejando a liberdade nas ruas, quase enlouquecida. E o bom padre, felicíssimo, achava que a era da Igualdade, da Liberdade e da Fraternidade fora finalmente decretada no Brasil. Mas esse novo tempo ainda estava longe de chegar, como ele constataria muito em breve…

CIÊNCIA E POLÍTICA

João Ribeiro Pessoa de Melo Montenegro veio ao mundo no distrito de Tracunhaém, em 1766. Filho de uma família distinta, mas muito pobre, seguiu a carreira religiosa. E, sendo um hábil desenhista, tornou-se auxiliar do monsenhor Arruda Câmara, um grande naturalista e também um mestre na arte da política.

O monsenhor vira de perto a “Grande Revolução” de 1789, na França, passando a disseminar seus ideais libertários por aqui, quando retornara. E o jovem padre, que o acompanhava nas suas expedições científicas, desenhando as novas espécies vegetais que iam sendo descobertas e catalogadas, tornou-se seu discípulo mais querido.

Tempos depois, João Ribeiro esteve em Portugal, onde se associou à Academia Real de Ciências de Lisboa. Na volta, empregou-se como professor de desenho no Seminário de Olinda e começou a ficar famoso pela dignidade, generosidade e cortesia, além da vasta cultura. Mais adiante, tornou-se administrador do Hospital do Paraíso, no Recife, onde fundou a “Academia do Paraíso”, dando continuidade ao trabalho em prol da liberdade e da democracia iniciado por Arruda Câmara, morto em 1811.

Segundo o comerciante Louis Tollenare, de quem ficou amigo, o padre João era “um homem pobre, mas bastante filósofo para desprezar a riqueza”, e “ninguém na Europa imaginaria haver aqui alguém tão sábio”. O francês, porém, o achava bondoso demais, desprovido da malícia necessária para atuar na política. E nos seus escritos profetizou que ele “se sacrificaria pela sua pátria, mas seria incapaz de salvá-la…”.

GOVERNO MILAGROSO

Quando a Revolução triunfou, foi proclamada a república e criado em Pernambuco um governo provisório, composto por cinco membros que representavam os comerciantes, os agricultores, os juristas, os militares e os religiosos — neste caso, João Ribeiro. E os homens de batina, os mais cultos e preparados numa terra de gente quase toda analfabeta, assumiram a administração pública.

Com a máquina incompetente e corrupta herdada do antigo regime, teria sido o caos se não fossem, além do próprio Ribeiro, o padre Miguelinho, o vigário Tenório e frei Caneca, que operaram verdadeiros milagres. Em apenas dois meses o “provisório” conseguiu reformar o sistema tributário; preparou um projeto de constituição — a primeira, em terras de língua portuguesa; pôs uma gráfica para funcionar pela primeira vez, nesta província; criou a primeira polícia brasileira, eficientemente comandada pelo patriota Felipe Nery da Fonseca; e deu fim ao monopólio dos mascates portugueses no comércio de alimentos, que promovia a carestia e a fome. Só não acabou com a escravidão devido à resistência dos proprietários. Mesmo assim decretou a alforria dos cativos que se alistassem no exército, no primeiro ato abolicionista promulgado no País.

O desenhista João Ribeiro, juntamente com o pintor José Alves, também criou para a república uma bandeira azul e branca com sol, um arco-íris, uma cruz e três estrelas que representavam Pernambuco, a Paraíba e o Rio Grande do Norte. À medida que outras províncias se libertassem novas estrelas seriam acrescentadas. E se mais não se avançou foi porque não houve tempo para isso.

Batinas brilhando até nos campos de batalha

O sonho durou pouco devido, em primeiro lugar, ao isolamento da Revolução. Alertados pelo ocorrido no Recife, os portugueses abafaram os levantes planejados para acontecer, também, em Salvador e no Rio, as outras duas grandes metrópoles do País. O segundo problema foi a falta de comandantes para as naus republicanas, pois os lusos jamais permitiram oficiais brasileiros na marinha de guerra. Em consequência, os portos pernambucanos foram bloqueados por uma esquadrilha inimiga, no dia onze de abril, e a fome grassou a partir daí, pois todos os alimentos aqui consumidos eram importados. Finalmente, as tropas locais eram despreparadas, porque os oficiais brasileiros, até então, eram impedidos de ultrapassar o grau de capitão na infantaria e na artilharia. E sequer eram aceitos na cavalaria e na marinha.

Pois até na guerra os religiosos brilharam, tentando suprir as carências militares. Frei João Loureiro, guardião do convento dos franciscanos, por exemplo, assumiu o codinome “Cachico” e se tornou um destacado líder de guerrilha. Padre Antônio Souto Maior, subvigário de Tejucupapo, foi outro que se revelou um grande soldado. E por tudo que fizeram os homens de batina, o movimento de 1817 acabou ganhando o apelido de “a revolução dos padres”.

No dia 13 de maio, porém, houve a derrota na batalha do Engenho Trapiche, ante o exército monarquista vindo da Bahia. As tropas republicanas, sob o comando do general Domingos Teotônio, retiraram-se, então, do Recife no dia 19, pretendendo prosseguir com a luta no interior. E o padre João Ribeiro as acompanhou, servindo de capelão.

À noite, contudo, arranchados no Engenho Paulista, os líderes republicanos concluíram que a causa estava perdida. Não havia condições de seguir adiante e a coluna se dissolveu, com cada um tomando seu próprio rumo, em busca de esconderijo. João Ribeiro, no entanto, em vez de tentar fugir preferiu se matar, enforcando-se na capelinha do engenho.

Mas a sua tragédia não findaria ali.

Quando o vice-almirante Rodrigo Lobo, comandante do bloqueio, desembarcou e retomou a posse da capitania, sua primeira providência foi mandar exumar o corpo do padre, o mais amado e respeitado líder revolucionário, e expor sua cabeça na ponta de uma vara, no centro do Recife. E lá ela ficaria por dois anos, para intimidar os pernambucanos, que, no entanto, não se aquietariam e se rebelariam novamente em 1821, 1824 e 1848, em nome dos mesmos ideais libertários e democráticos defendidos por João Ribeiro.

Religião no País

“A religião é um estratagema para consolidar a dominação dos ricos sobre os humildes”, escreveu o francês Montaigne. E, para Napoleão, a religião era uma coisa excelente para manter as pessoas quietas. Mas, no Brasil colonial, isso era uma meia verdade. De início, os religiosos fizeram muito por Portugal, pregando ao povo tanto o amor a Deus quanto ao rei. Com o passar do tempo, porém, eles foram se abrasileirando, e do seu meio, pelo menos em Pernambuco, saíram revolucionários como Arruda Câmara, João Ribeiro, Pedro Tenório, Miguelinho e Frei Caneca. Dos 120 padres que havia aqui em 1817, aliás, cerca de 60 participaram da Revolução.

A cabeça de João

O crânio do padre João Ribeiro esteve guardado no Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico de Pernambuco, onde ficou exposto ao público até 2001, quando a diretoria avaliou que, daquela maneira, o castigo imposto a ele estava sendo perpetuado. E, considerando-se que sua morte e seu primeiro sepultamento se deram na capela de Nossa Senhora da Conceição, no Engenho Paulista, ele foi enterrado na igreja de Santa Isabel, também na cidade de Paulista, numa ação conjunta com o Governo do Estado, a Arquidiocese de Olinda e Recife e a prefeitura local. Que lá descanse em paz e continue nos inspirando.

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