Gervásio Pires Ferreira, um autêntico patriota

Negociante muito rico, ele não se omitiu de participar da vida pública e penou bastante por isso

Gervásio Pires entrou para a História sem bater à sua porta. Foi convidado a entrar. Até 1817 ele cuidava apenas dos seus negócios, quando os revolucionários que assumiram o governo de Pernambuco lhe ofereceram o posto de diretor do Erário, uma espécie de ministro da Fazenda. E ele, muito lúcido e vivido, aos 52 anos, aceitou a incumbência, mesmo consciente de que aquele movimento — bem intencionado, porém amador — dificilmente daria certo. Por conta disso amargou quatro anos de prisão, na Bahia, após a derrota republicana.

Anistiado, em maio de 1821, em outubro ele já cumpria outra difícil tarefa. Em nome dos pernambucanos, novamente rebelados, negociou com o general português Luís do Rego a renúncia dele ao governo da capitania. E quando Rego partiu, Gervásio, o filho da terra mais capaz e preparado, além de um respeitado herói de 1817, foi aclamado presidente da chamada “Junta de Goiana”, e assumiu o comando local.

Seus problemas, contudo, estavam longe de acabar…

TEMPOS CONFUSOS

Nascido em 1765, filho de um rico comerciante luso, o garoto recifense foi estudar em Portugal com apenas onze anos de idade e ficou por lá, fazendo uma bela carreira no mundo dos negócios. Casou com uma aristocrata, D. Genoveva Perpétua de Jesus Caldas, e viveu em Lisboa até a chegada das tropas de Napoleão e a fuga do príncipe D. João e sua corte para Rio de Janeiro, em 1807.

Gervásio, então, voltou à terra natal e se estabeleceu como um dos maiores comerciantes do País — foi o primeiro brasileiro, por exemplo, a negociar diretamente com a Índia —, até a Revolução de 1817. Preso por subversão, ele ganhou, na Bahia, o apelido de “o mudo de Pernambuco”, pois não disse uma palavra na cadeia. Só recuperou a voz ao ser libertado, quatro anos depois, para logo assumir o governo da capitania e meter-se em mais encrencas.

A confusão, naquele tempo, era grande. Em Lisboa estavam reunidas as “Cortes”, uma assembleia de deputados de todo o Reino Unido do Brasil, Portugal e Algarves, que exigia mais democracia. E que, com apoio das tropas portuguesas, havia obrigado o agora rei D. João VI a voltar para Lisboa, mantendo-o como refém.

Antes de partir, porém, em abril de 1821, Sua Majestade nomeou seu filho Pedro regente do Brasil, à revelia das Cortes. E, mesmo sob pressão da guarnição lusa estacionada no Rio de Janeiro, o jovem príncipe tentava manter-se no cargo com apoio de alguns brasileiros, como José Bonifácio. Os quais, por sua vez, queriam tirar proveito da situação para separar nosso país de Portugal, com D. Pedro tornando-se rei.

Mas nem todos, aqui, pensavam o mesmo. Havia os que queriam a volta do antigo regime. Havia os que queriam manter a união com Portugal, sob uma monarquia constitucional. E havia os que queriam a independência e a proclamação de uma república — principalmente, os pernambucanos que haviam feito a Revolução de 1817.

UM GRANDE DILEMA

Gervásio Pires, um homem prático, acataria qualquer dessas propostas, exceto a volta do antigo regime. O importante, para ele, era que houvesse liberdade e fosse assegurada a autonomia administrativa das capitanias. E manter Brasil e Portugal unidos, com o rei submetido a uma constituição, lhe pareceu o melhor, a princípio.

O desengano, porém, foi rápido. Com seu país arrasado por séculos de má administração e pelas recentes décadas de guerras, os portugueses resolveram sangrar o Brasil. As Cortes decretaram a volta de antigos privilégios coloniais extintos com a mudança do rei para cá, em 1808. E logo, logo, a maioria dos brasileiros — inclusive, Gervásio — estava apoiando a independência.

Aí o problema passou a ser as tropas portuguesas estacionadas no Rio, na Bahia e em Pernambuco — onde, por exemplo, estava arranchado o famoso Batalhão Algarves.

Gervásio, porém, com muita habilidade e diplomacia, conseguiu mandar o Algarves embora sem grandes alterações, ao contrário do Rio e da Bahia, de onde as tropas lusas só saíram tempos depois, e com luta.

Então, chegou a hora de escolher entre monarquia ou república para o Brasil. E as duas opções lhe pareciam igualmente ruins.

Fogo monarquista ou frigideira republicana

O fato é que, com D. Pedro no lugar de D. João, nada mudou. As taxas e os tributos antigos, por exemplo, continuaram a ser cobrados. E o autoritarismo era o mesmo. A toda hora chegavam notícias de perseguições aos liberais, no Rio de Janeiro.

Por outro lado, a república fora aclamada em Pernambuco, em 1817, porque se apresentava como o único caminho para a liberdade. Mas ser livre e, ao mesmo tempo, preservar os velhos costumes, parecia o ideal, aos olhos do povo. Afinal, há trezentos anos os padres pregavam nas missas que o rei governava em nome de Deus etc. etc. E os ricos nunca simpatizaram muito com as “ideias francesas”: Liberdade, Igualdade e Fraternidade.

“Se é para ser escravo, prefiro sê-lo do meu rei do que do meu irmão”, era um ditado corrente entre os grandes proprietários.

Gervásio, então, ficou indeciso, e acabou sendo atropelado pela urgência dos fatos e a esperteza de José Bonifácio. O ministro de D. Pedro mandou para cá um agente que, com promessas de melhorias de vida e aumento de soldo para os militares, fez crescer o apoio popular à monarquia. Quando chegou ao Recife a notícia de que o príncipe, no dia três de junho de 1822, convocara uma assembleia nacional constituinte, as tropas e as massas saíram às ruas para comemorar. E, no dia 16 de setembro, o capitão Pedro da Silva Pedroso — outro herói da Revolução de 1817, que também esteve trancafiado na Bahia — derrubou a Junta de Goiana, presidida por Gervásio.

Formou-se, então, um governo provisório, a “Junta dos Matutos”, presidida por Francisco Gomes dos Santos, e Gervásio foi novamente preso e despachado daqui. Mandaram-no para o Rio de Janeiro, acusado de conspirar contra D. Pedro.

O navio que o levava, porém, fez escala em Salvador, ainda sob controle do general português Inácio de Melo Madeira. E ele acabou sendo desviado para Lisboa, agora acusado de tramar contra as Cortes. Só recuperou a liberdade um ano depois. E quando voltou presenciou mais um levante pernambucano — a Confederação do Equador, em 1824 —, contra o autoritarismo de D. Pedro que ele já temia, tempos atrás.

Desta vez, porém, Gervásio ficou de fora. Cansado, maltratado e sem ter recebido nenhuma reparação pelas perdas e transtornos sofridos, declarou-se aposentado da política.

Mais adiante, contudo, já sessentão, ele acabou sendo eleito deputado à Assembleia Legislativa Provincial e à Assembleia Geral, no Rio de Janeiro, à revelia. E, mais uma vez, não se negou a colaborar, organizando a Tesouraria de Pernambuco e contribuindo para a elaboração da Lei Brasileira do Orçamento e do Código do Processo Criminal.

Gervásio Pires morreu em 1838, tendo sido humildemente enterrado na Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, como pediu. Hoje, dá nome a uma das principais ruas do Recife.

As juntas provinciais

Após o levante constitucionalista do Porto, em 1820, e o estabelecimento das Cortes, em Lisboa, passaram a ser criadas juntas governativas em substituição aos governadores nomeados por D. João VI, no Brasil. Nas províncias mais populosas, onde havia mais tropas, essas juntas eram controladas pelos militares portugueses. Somente nas províncias menos povoadas, como São Paulo, cuja capital era uma vila com sete mil habitantes, elas eram compostas por gente da terra. A exceção, como sempre, foi Pernambuco — umas das quatro grandes, ao lado do Rio, Minas e Bahia —, onde o governo foi formado por civis, mesmo estando aqui arranchado o Batalhão Algarve, veterano das guerras napoleônicas.

A malandragem portuguesa

Antes da chegada da maioria dos deputados brasileiros às Cortes, em Lisboa — os pernambucanos desembarcaram cedo —, os portugueses, em ampla maioria e com seu país mergulhado numa profunda recessão econômica, tentaram achacar o Brasil. Eles determinaram, por exemplo, que todos os navios zarpados daqui aportassem em Portugal, como nos tempos antigos. E também extinguiram os tribunais de última instância locais, obrigando quem tivesse pendengas jurídicas prolongadas a ir resolvê-las em Portugal, entre outras medidas semelhantes. Mas o que conseguiram, com isso, foi acelerar a nossa independência.

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