Na área técnica, a presença de mulheres em relação ao espaço ocupado pelos homens é mínima. Na arbitragem, essa representatividade é um pouco maior. Mas não muito. E em sua maior parte relegadas a posições não protagonistas. Dos 243 árbitros principais presentes no quadro da CBF, somente 17 são mulheres. Um total de 7%. O número de assistentes é um pouco maior: 64 mulheres em um total de 335, chegando a 19%. O preconceito é igual, porém. Com as mesmas “piadas”, o mesmo desrespeito.

Deborah Cecília está na carreira de árbitra há 12 anos. Relutou no início, quando ainda conciliava a faculdade de educação física com a vida de goleira. Dizia não ter paciência para debater com jogadores. Mas, incentivada pelos árbitros com quem conviveu num estágio do programa Círculos Populares, começou o curso da Federação Pernambucana de Futebol (FPF).

As primeiras experiências em campo vieram nos campeonatos de várzea. Foi também quando Deborah chegou perto de desistir pela primeira vez. “Comecei como bandeirinha porque tinha medo. Marcava impedimento errado, era um problema. Aí pensei: ‘Ou eu estudo, ou vou marcar coisa errada, ou então eu desisto’. E eu disse: ‘Desisto’. Eu disse a eles (Comissão de Arbitragem): ‘Não me escalem mais, eu não vou mais fazer o curso’.”

Com o tempo, porém, as atividades, treinamentos e o constante discurso sobre a ausência de mulheres como árbitra central fizeram com que ela começasse a se interessar novamente. Voltou atrás. Largou a faculdade, a rotina de jogadora e passou a se dedicar inteiramente ao apito, mesmo sem receber salários, como costuma ser o início de todos que se arriscam nessa carreira.

QUEBRA DO TABU

No Pernambucano 2017, após mais de 20 anos, uma árbitra voltou a apitar um clássico no estado: Deborah Cecília, em Sport x Santa Cruz, pela 8ª rodada do torneio. Era uma das metas da árbitra, que na época reconheceu que não esperava apitar um clássico ‘tão cedo’. Mas o caminho não foi fácil. Ser uma das poucas mulheres atuando num ambiente predominantemente masculino tem seus problemas. Enfrentamento de jogador, resistência de dirigentes e o tratamento desigual no exercício da profissão.

 

“Se o homem faz X, eu tenho que fazer 3X. Se ele erra aqui, eu não posso errar nenhuma vez. A cobrança é muito maior, o peso é muito grande. Vão dizer logo que é porque é mulher, que não é para estar ali, que não sabe, não tem capacidade. Mulher não pode errar na arbitragem. Se errar… Dependendo do erro, de como for, com quem for e contra quem for, é capaz de você nem entrar mais nos jogos”, acrescenta.

“Nem toda mulher quer ter esse passo a passo não. Às vezes, o marido não aceita. Às vezes, tem sua carreira, vida acadêmica já formada e não tem tempo para estar treinando para passar em teste. Ela tem que querer, não adianta só a federação abrir curso. Mas não é fácil querer estar no meio de um monte de macho preconceituoso que não quer você ali.”

Deborah Cecília

árbitra da CBF

O teste como barreira

Era fim de tarde de uma terça-feira, dia 3 de outubro de 2017. No Centro Esportivo Santos Dumont, no Recife, 16 árbitros dividiam a mesma bateria no teste físico para manutenção do escudo da Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Falhar significa deixar de ser relacionado para jogos das séries A e B do Brasileiro. Entre eles, somente uma mulher: a pernambucana Deborah Cecília. A árbitra, inclusive, já havia passado por um processo semelhante um mês antes, mas para manter o escudo da FIFA que carrega desde o início de 2017.

A preparação física é constante. Deborah treina todos os dias em uma rotina com academia e treinamento de pista, acompanhada pelo instrutor físico da CBF Paulo Camelo, por meio de uma planilha na internet. Perto dos testes, que costumam acontecer a cada três a quatro meses, os treinos se intensificam. Dessa vez, Deborah ainda precisou perder três quilos porque a prova exige velocidade.

Em Pernambuco, entre os 31 árbitros e assistentes que integram o quadro, somente três são mulheres: Deborah Cecília, Ana Karina e Fernanda Colombo. No quadro atualizado da Federação Pernambucana de Futebol (FPF), por outro lado, aparecem oito. Deborah, Ana e outras sete mulheres que não figuram na CBF por estarem numa categoria abaixo do exigido pela entidade. Até 2016, outras três faziam parte da relação estadual, mas abandonaram a carreira. Entre os motivos, a exigência física aparece como o fator mais frequente.

ENTENDA O TESTE

Primeira etapa

6 tiros de 40 metros

cada tiro em 6 segundos (6,6m/s = 24km/h)

Segunda etapa

40 tiros de 75 metros na pista

cada tiro em 10 segundos (7,5m/s = 27 km/h)

O machismo em sua essência

“A gente pega essa bandeira bonitinha. Se ela é bonitinha, que vá posar na Playboy, no futebol tem que ser boa de serviço. Ela não tem preparo, os caras gritam e ela erra.”

A frase acima é a única desta reportagem de autoria de um homem. É uma demonstração aberta do preconceito que desaba sobre as mulheres que trabalham no futebol. Foram proferidas por Alexandre Mattos, diretor de futebol do Cruzeiro, em 2014, numa coletiva de imprensa.

A árbitra em questão era a bandeirinha catarinense Fernanda Colombo, frequentemente associada à imagem de “musa” no esporte. Na época, impediu uma jogada que poderia resultar num gol do time mineiro, marcando impedimento inexistente de Alisson, aos 41 minutos do segundo tempo. O jogo terminou com a derrota da Raposa para o Atlético-MG no Brasileirão. Após a partida, a CBF anunciou o afastamento da auxiliar de arbitragem por duas rodadas da Série A do Campeonato Brasileiro.

Assim como acontece no caso das treinadoras no país, nesse âmbito, as árbitras não recebem apoio por parte das federações estaduais ou da CBF. Nos casos que envolveram falhas consideradas graves, como consequência, além de sofrerem o afastamento dos gramados, muitas profissionais sucumbiram aos ataques preconceituosos e acabaram não conseguindo retomar a carreira.

A reportagem tentou entrar em contato com Fernanda Colombo durante todo o processo de construção deste especial, mas não obteve retorno. As informações apuradas, porém, é de que a bandeirinha abandonou a carreira, mesmo ainda figurando no quadro nacional de árbitros. Em seu histórico publicado no site oficial da CBF, não existem registros de atuação da assistente desde 2016.

Curiosidades

Bibiana Steinhaus, policial, 38 anos
Jogo: Hertha Berlin 1 x 1 Werden Bremen no Olympiastadion
Em setembro de 2017, Steinhaus marcou a história como a primeira mulher a arbitrar um jogo da Bundesliga, a primeira divisão alemã. A primeira dentro das cinco principais ligas europeias – Inglesa, Espanhola, Francesa e Portuguesa. O marco exaltado pela entidade nacional e pelo clube mandante da partida, que ofereceu 50% de desconto nos ingressos do jogo para torcedoras mulheres.

Quadro da CBF

As mulheres representam 11% do quadro geral de árbitros da CBF

mulheres em um total de 729 árbitros

%

delas desempenham cargos não protagonistas na equipe de arbitragem

são assistentes (Total: 335)

são assessoras, inspetoras ou tutoras (Total: 150)

mulheres desempenham o papel de árbitra principal (Total: 243)

Seja conduzindo partidas das Séries C, D ou em campeonato femininos, elas representam 7% do total de 243 árbitros principais no quadro da CBF.

Como está Pernambuco
Homens – 28
Mulheres – 3:
 
Deborah Cecília
Fernanda Colombo
Ana Karina

Quadro da FPF

árbitros

são mulheres

No quadro da Federação Pernambucana de Futebol, somente oito mulheres integram a lista. Representam 9% do total. Mas somente Deborah Cecília e Ana Karina aparecem neste quadro e no da Confederação ao mesmo tempo. As outras sete ainda integram uma categoria abaixo do exigido pela CBF.

As oito mulheres de Pernambuco
Ana Karina
Deborah Cecilia
Bruna Maria Silva
Daniele de Andrade
Elaise Juliana Santana
Glauce Virginia
Karla Renata
Robertta Asfóra

Baixa representatividade nas salas de aula

No fim de 2016, pela primeira vez na história, Pernambuco graduou uma turma de árbitros de futebol. Uma geração de 22 árbitros e 19 assistentes deixou a Escola de Formação de Árbitros (Sherlock), criada pela Federação Pernambucana de Futebol (FPF) em 2014. E, mais uma vez, o cenário não foi diferente do habitual. Dos 41 alunos, somente quatro eram mulheres.