Recifense vai de carro à esquina

Diario de Pernambuco

Por Ed Wanderley

Chegou a hora de voltar do trabalho ou faculdade e você lembra que deve comprar pães: chegar em casa e aproveitar para esticar as pernas, caminhando, ou fazer uma parada estratégica no caminho? E para ir à farmácia ou restaurante que ficam a duas ruas de distância? Visitar um conhecido a três quadras de casa? A resposta natural e racional seria aproveitarmos essas oportunidades para nos movimentar.
Mas, na prática, o recifense tende a optar pelo automóvel em todas essas situações. Comodidade, hábito, falta de tempo, intolerância às altas temperaturas ou simplesmente receio da falta de infraestrutura e segurança que as ruas da cidade podem oferecer. Por mais diversas que sejam as justificativas, elas revelam uma sociedade mais sedentária e menos conectada ao local onde vive. O resultado acaba sendo não apenas um crescente problema de mobilidade urbana, mas também de saúde pública que, pelos indícios, está longe de encontrar uma solução.

Segundo o presidente do Instituto Pelópidas Silveira, Milton Botler, foi criada, no Recife, uma cultura vulgar, mal vista no mundo inteiro, que torna as pessoas reféns do automóvel. “Isso é ruim para a saúde e para a própria cidade”, explica. Para ele, a culpada seria a sensação de insegurança em toda a cidade, fato que independe da própria criminalidade ou de infraestrutura. “É uma questão de ‘percepção’. Se as pessoas não se sentem seguras acabam em uma cidade cujos prédios têm altos muros e seus moradores abandonam os espaços públicos. Os bairros em que as calçadas apresentam melhores condições de uso são justamente onde elas ficam mais abandonadas”, avalia.

Contrariando o que parece ser uma maioria, Hilton Costa, 48, busca ao máximo evitar o uso do próprio carro. Apesar de residir no bairro de Piedade, em Jaboatão dos Guararapes, e trabalhar no bairro da Boa Vista, no Recife, o publicitário estima que 80% de seus percursos sejam realizados a pé. “Planejo meu dia. Só uso o automóvel quando sei que vou me deslocar para longe e com pouco tempo. Prefiro ir trabalhar de ônibus. Nas áreas próximas ao centro, caminhando consigo chegar aos locais sem maiores atrasos e em menos tempo, sem preocupação com estacionamentos, que quase não existem”, explica, com a simplicidade lógica dos poucos pernambucanos que fazem este tipo de trajeto por opção.

De acordo com uma pesquisa da Sociedade Brasileira de Cardiologia, o Nordeste é a região com o menor índice de pessoas fisicamente ativas do país (48%). Para o Doutor em Nutrição da Universidade de Pernambuco Wagner Luiz Prado, a tendência é bastante forte na capital pernambucana, uma das menos ativas do Brasil. “Percebemos que a atividade acaba mais atrelada ao lazer. No cotidiano, as pessoas preferem a comodidade”, explica. A situação é tão alarmante que uma pesquisa desenvolvida na própria UPE mostra que o problema existe mesmo entre os universitários ingressantes em cursos de saúde, que deverão lidar profissionalmente com questões como obesidade, qualidade de vida e prevenção de doenças.

Os resultados apontaram que menos da metade faz exercícios físicos regulares e que uma média de 10% dos alunos de cursos como educação física e enfermagem apresentavam sobrepeso. “As pessoas não entendem que a questão vai além da estética ou da preservação cardiovascular. Atividade física significa qualidade de vida”, complementou Prado.

Conforto e calor
Estevam Marinho Filho
Administrador, 27 – Madalena

Para jovens de algumas décadas passadas, possuir um automóvel poderia ser sinônimo de independência e status. Hoje, para pessoas como Estevam Marinho Filho, 27, é uma questão de necessidade e, como brinca, de sobrevivência. A primeira questão se dá por conta da vontade de atender aos próprios anseios, sem intervenções de terceiros. “Não gosto de depender de ninguém. Mesmo quando vou para qualquer lugar com amigos, temos que ir no meu carro. Não gosto de ter ninguém influenciando o horário para onde eu vou ou volto dos lugares ou me impedindo de fazer o que eu tiver vontade”, explica.

O perfil do administrador de empresas acaba sendo um retrato de uma cultura local, que resulta em uma grande concentração de veículos nas ruas, com uma taxa pouco maior do que um ocupante por carro. “É uma questão de facilidade e, claro, de conforto”, justifica.

Quando fala de sobrevivência, na verdade o jovem se refere às altas temperaturas da cidade. Com uma média histórica de 27ºC, segundo o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, Recife faz de seus moradores reféns de um clima quente e bastante úmido. “O calor é muito grande. Não tem perigo de eu me deslocar na cidade sem ar condicionado”, conclui.

Hábito e falta de tempo
Bruno Moura
Empresário, 23 – Aflitos

Para algumas pessoas, 70% de todo o tempo que se perde em um dia é atribuído ao trânsito. No caso de Bruno Moura, 23, os mesmos 70% representam o tempo de seu dia que são gastos dentro do próprio carro. Proprietário de uma empresa de comunicação no Recife, o jovem circula entre os municípios da Região Metropolitana durante toda a semana e já fez dos congestionamentos um aliado. “O deslocamento é intenso, então você aprende a aproveitar melhor o seu tempo dentro do veículo mesmo. Telefona, manda e-mail, resolve pendências. Nestes casos, o trânsito infernal até ajuda”, brinca.

Questionado sobre o costume de caminhar pela própria cidade, o empresário admite que, por costume, prefere os arrodeios necessários para se deslocar nas proximidades de sua residência. A academia e a livraria que frequenta ficam em uma rua paralela ao seu apartamento, a 350 metros. Mas a opção acaba mesmo sendo o carro. Por conta dos sentidos da via e da grande concentração de semáforos, Moura percorre entre 800m e 1,1km e, às vezes, gasta três vezes mais tempo para chegar ao destino. “Mesmo com o congestionamento, em especial na Av. Rosa e Silva, acho mais vantajoso não ir andando”. No caminho não feito, o jovem deixa de ter contato com pontos culturais e o Parque da Jaqueira, recursos perdidos entre a ânsia do tempo e o cinza de um asfalto cada vez mais presente.

Praticidade e Planejamento
Betânia Rocha
Juíza, 37 – Casa Forte

Moradora do Recife e juíza em Vitória de Santo Antão, na Zona da Mata pernambucana, Betânia Rocha não enxerga sua rotina sem o próprio carro. Mas, segundo ela, a distância não é o único empecilho para que seu deslocamento seja exclusivamente feito com o auxílio de quatro rodas. “A pessoa anda quando o sistema público de transportes funciona. Em outros lugares para onde viajo, não tenho problemas para caminhar. Aqui? É impossível”, justifica.

Se a dependência do veículo se apresenta quase como uma única alternativa para cobrir a ida e volta do trabalho, nas ruas do Recife, e mesmo ao redor da sua residência, a realidade se repete. E quando se somam questões de falta de segurança e de tempo, discurso comum entre a ‘geração motorizada’ da capital pernambucana, o resultado é um estilo de vida que mantém habitantes mais longe das ruas, o maior tempo possível. Uma vez dentro do carro, procura-se realizar todos os afazeres do cotidiano de uma só vez, especialmente no retorno para casa. “Faço todo um planejamento, elencando o que tenho que fazer ao sair do trabalho e cumpro o roteiro para não precisar ir a pé para lugar algum”, conta.

Infraestrutura
Cassandra Farias
Advogada, 58 – Boa Viagem

Para a advogada Cassandra Farias, a culpa da grande dependência dos recifenses por automóveis é da própria cidade. Sem uma estrutura que permita um caminhar confortável, muita gente acaba deixando de aproveitar o que o município tem a oferecer. “As calçadas estão em péssimo estado. Muitas são íngrimes e são marcadas por diversos buracos. Fica impossível alguém caminhar de salto alto sem correr um risco de se ferir”, explica.

Segundo o Instituto Pelópidas Silveira, apenas no Recife há 5.157,55 quilômetros de calçadas. O problema é que com a divisão de responsabilidade pela manutenção delas, entre a prefeitura municipal e proprietários ou condomínios privados, não se tem um levantamento eficiente de quanto deste total está em bom estado de uso.

Se as calçadas, enquanto recursos públicos disponíveis, não se fazem atraentes, seu complemento é ainda mais mal visto pelos moradores, o que reforça a massiva preferência pelos automóveis. “Os transportes públicos não estão adequados para a demanda e não dá para andar a pé”, defende Cassandra. Com um índice de ocupação média de 76,9 passageiros por viagem,  os ônibus não se mostram uma opção viável.

Insegurança
Tereza Cristina de Andrade
Arquiteta, 64 – Graças

Bastou estacionar o carro um pouco mais distante da casa de uma amiga, em Boa Viagem, para que a arquiteta Tereza Cristina Cunha de Andrade, 64, fosse abordada por um ladrão na rua, enquanto caminhava do automóvel à recepção do edifício. “O porteiro foi quem viu a movimentação e veio me ajudar. O rapaz levaria minha bolsa. Desde então, não vou comprar um pão na esquina que não seja de carro”, conta.

A sensação de insegurança enfrentada pela moradora do bairro das Graças reflete uma cultura coletiva que atribui ao interior de seus próprios veículos, uma alternativa de fuga da violência urbana no Recife. De vidros fechados, marcados pelas películas de proteção (que, no final das contas, pouco a oferecem), os motoristas se previnem como podem. “Para falar a verdade, se eu for a um estabelecimento que não tenha estacionamento bem na frente, prefiro comprar em um outro lugar”, afirma.

A infraestrutura urbana também acaba reforçando a sensação de vulnerabilidade. No bairro em que vive, Tereza Cristina também identifica uma grande deficiência em termos de iluminação pública. Se durante o dia já há receio de circular pelas ruas caminhando, à noite, andar nas vias não é opção. “É horrível você sair de casa se preocupando na melhor forma de esconder o celular”, conclui.

4 Replies to “Recifense vai de carro à esquina”

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  2. Os relatos de quem não abre mão do carro convergem para um ponto: a falta de segurança que é maior para os que estão fora do veículo.
    Dizer que transporte público de qualidade, há certas divergências entre o que o povo e o gorveno pensam, motivaria usários de automóveis a fazer uma migração é insuficiente. O transporte público corre o risco de ser assaltado e vandalizado. Ele não deixa ou passa, em sua grande maioria, na porta de casa ou da empresa fazendo com que a pessoa tenha que se deslocar a pé ficando mais vulnerável. Em países desenvolvidos a migração é mais fácil, pois a segurança pública funciona, tanto que é possível em alguns locais sacar dinheiro em caixas automáticos instalados nas calçadas sem nenhum problema, enquanto aqui quando você não é seguido pelos ladrões, são os ladrôes que explodem os caixas onde quer que estejam. Como sensação de segurança não tem preço, para muitos, é melhor ter despesas maiores usando um veículo a correrem um risco bem maior de serem assaltados fazendo pequenos trajetos, dentro dos coletivos, sem esquecer da possível ausência de conforto.

  3. Eu acho muito triste tudo isso. No fim das contas, todas estas pessoas têm razão. Mas eu consegui me adaptar a usar a bicicleta e fazer muitas coisas a pé, o que me faz curtir mais a cidade, e não só me locomover entre os destinos.
    Esta questão é uma bola de neve… quanto mais pessoas dentro dos carros e não nas calçadas, mais insegura é a rua. Um bom exemplo é o cais José Estelita, que nestes domingos tem estado chieo de gente, sem nenhum incidente nem perigo. E é considerado por muitos, um dos pontos mais perigosos da cidade.

  4. Realmente, todos os motivos elencados fazem parte da realidade das pessoas que os usam como motivos para não se deslocar a pé.
    O que me deixa mais triste é saber que esses problemas são parte de um círculo vicioso, onde há um pouco de responsabilidade de cada um de nós: dos governos [ao resistir em se pensar em deslocamentos curtos para se fazer de bicicleta ou a pé, caminhos arborizados, praças; falta de vontade e/ou idéias (dos 10 milhões de reais destinados a projetos de mobilidade não-motorizada, menos de 1 milhão foram utilizados)], bem como da sociedade, que diante do transporte público ruim, das calçadas intransitáveis e dos casos de violência, fogemn das ruas, ao invés de cobrar que elas sejam mais usáveis.

    De qualquer forma, é difícil saber em que ponto governos e sociedade erraram ou se omitiram, mas sabemos o que fazer para reverter essa situação. Basta arregaçarmos as mangas e buscar a cidade que desejamos ver fora das bolhas de ar-condicionado.