Transparência no lugar da caixa-preta

 

Sistema de Transporte Público de Passageiros precisa abrir as contas ao público - Foto Blenda Souto Maior DP/D.A.Press
Sistema de Transporte Público de Passageiros precisa abrir as contas ao público – Foto Blenda Souto Maior DP/D.A.Press

Que a qualidade do transporte público no Brasil deixa muito a desejar, não é nenhuma novidade. A mudança na forma de olhar o sistema não passa apenas pelos investimentos que precisam ser feitos no setor, mas também na transparência de como as operações são realizadas. No imaginário coletivo, a famosa “caixa-preta” esconde ou simula a verdade da receita e o custo da operação do sistema. Entre verdades e mitos, o fato é que essas contas nunca ficaram mesmo às claras e para resgatar a confiança no sistema é preciso fazer mea-culpa e começar a agir com transparência.

A má fama que o atual modelo carrega é resultado, segundo o presidente da Associação Nacional de Transportes Urbanos (NTU), Otávio Cunha, do silêncio dos empresários e omissão dos órgãos gestores. “Essa é uma questão muito mal resolvida. Nas manifestações pela redução da tarifa, os empresários ficaram calados e o poder público, que estabelece o valor, também se calou. Via de regra, isso vem acontecendo”.

Ainda, segundo Cunha, falta clareza. “A gente não tem sabido explicar e esse número é para ser público. O órgão gestor tem obrigação de saber como a operação é feita. E hoje com a bilhetagem eletrônica não tem como não saber”, afirmou. A razão é simples: o sistema eletrônico permite identificar quantos passageiros passam pela catraca, quantas viagens são feitas e quantos quilômetros cada ônibus percorre em um dia. “Nós temos como saber quanto entrou de receita e com a quilometragem percorrida há indicadores para avaliar desgaste de pneus e combustível”, detalhou.

Fazer as contas e disponibilizá-las para o público é o caminho mais transparente que os especialistas da área apontam. “No próprio site do órgão gestor essa tabela de custos pode ser disponibilizada e atualizada a quem interessar”, ressaltou Marcos Bicalho, diretor administrativo da NTU. Na RMR, o site do Grande Recife Consórcio não dispõe de informações a respeito da planilha de custos da operadoras.

Na RMR, são transportados por dia cerca de 2 milhões de usuários e uma frota de três mil ônibus. Foi o Sindicato das Empresas de Transporte de Passageiros que revelou dados do custo de operação para justificar a incapacidade de dar um aumento de 10% aos empregados do sistema e mais um reajuste de 75% no tíquete alimentação. A queda de braço entre patrões e empregados penaliza o usuário com as paralisações.

“Nós estamos com um déficit de quase R$ 7 milhões por mês e a saída está sendo usar o fundo da renovação da frota para alimentar o sistema”, revelou o presidente da Urbana-PE, Fernando Bandeira, em entrevista coletiva.

O déficit pegou todo mundo de surpresa, até mesmo o presidente do órgão gestor, Nélson Menezes, que na ocasião disse ser necessário um estudo para a avaliar a existência ou não de um buraco no sistema. Alheio às contas, o usuário também tem dúvidas sobre a matemática do sistema.

Passageiros ônibus/Recife - Foto - Roberto Ramos /DP/D.A. Press
Passageiros ônibus/Recife – Foto – Roberto Ramos /DP/D.A. Press

A lei anticorrupção também no transporte

Aprovada em 2013 após as manifestações populares de junho, a Lei 12.846/13, também conhecida como lei anticorrupção, pode ajudar a mudar a imagem do sistema. As empresas de ônibus sempre tiveram a imagem associada aos financiamentos de campanhas eleitorais. Não por acaso, o tema foi destaque do último seminário promovido pela Associação das Empresas de Transportes Urbanos (NTU).

O puxão de orelha nos empresários é para usar da transparência em todas as áreas. “Quanto mais transparente, melhor. A lei anticorrupção vai apertar cada vez mais e a sociedade está cobrando isso”, afirmou o diretor administrativo da NTU, Marcos Bicalho. Segundo ele, a licitação do sistema servirá para deixar as regras mais claras. “Na licitação, se firma um contrato com direitos e deveres. Nem mais, nem menos. O que possibilita uma melhor transparência do processo.”

A advogada Rogéria Gieremek, gerente executiva de Compliance traduziu para o setor as várias vertentes da legislação, que não pode ser ignorada pelas empresas em qualquer ramo. “A grande novidade dessa lei é que ela não pune apenas pessoas, mas as empresas também são responsabilizadas. E ela pode, inclusive deixar de existir. Além disso, a prisão é uma consequência possível”, alertou.

Ela também ressaltou a responsabilidade objetiva. Qualquer irregularidade na empresa, o proprietário é diretamente responsável e não poderá dizer que não sabia.

Saiba mais

Receita da tarifa R$ 76.349.619,67
Folha de pessoal R$ 38.433.176,30
Combustível R$ 14.798.710,99
Depreciação R$ 7.767.306,29
Lucro R$ 4.344.266,30
Impostos R$ 6.184.319,19
Peças R$ 6.067.015,08
Gratuidade R$ 5.409.857,26
Custo total R$ 83.004.651,42
*Déficit mensal R$ 6.655.031,75

Tributos e desonerações das atividades das empresas operadoras na RMR
– IPVA PE – 1% sobre o valor do veículo
– ISS – Reduziu de 5% para 2% sobre o faturamento
– RST (Remuneração por Serviços Técnicos) – 5,5% sobre o faturamento
– COFINS – 3% (cobrança suspensa, atualmente está em 0%)
– PIS – 0,65% (cobrança suspensa, atualmente está em 0%)
– CSLL – 12% (Contribuição Social sobre Lucro Líquido)
– Contribuição social – reduziu 2% sobre o faturamento
– Encargos sociais – 70% sobre o salário. Não houve redução
-Tributos incidentes sobre os insumos (pneus, peças e acessórios, combustível), ICMS, IPI, PIS, COFINS

Fonte: Urbana-PE

Para onde está caminhando o transporte público no Grande Recife ?

ônibus engarrafamento Recife - Foto - Júlio Jacobina DP/D.A.Presss

Um ano e três meses após os protestos de junho de 2013, a população ainda aguarda melhorias no transporte público. Persistem os ônibus lotados, longas filas, falta de informações e o trânsito travado. Somente na Região Metropolitana do Recife, quase mil viagens deixam de ser realizadas por dia em razão dos congestionamentos. Nem os R$ 50 bilhões disponibilizados pelo governo federal após os protestos pela melhoria do transporte no país tiveram resultados práticos.

Dos R$ 143 bilhões destinados a obras de mobilidade, apenas 10% foram utilizados. O BRT, principal aposta de mobilidade na Copa, funcionou com limitações na maioria das cidades-sede em decorrência de atrasos nas obras. O Recife não conseguiu, ainda, operar 100% da capacidade dos corredores, dois meses após o fim do mundial. Ainda engatinhamos nas discussões sobre os salários dos rodoviários e o valor da tarifa, e não avançamos na questão da qualidade do serviço, usado por cerca de 2 milhões de usuários/dia.

Passageiros ônibus/Recife - Foto - Roberto Ramos /DP/D.A. Press
Passageiros ônibus/Recife – Foto – Roberto Ramos /DP/D.A. Press

O modelo não atende mais às necessidades de uma clientela cada vez mais consciente, com menos tolerância para sofrer em um transporte que custa a andar. Até domingo, o Diario coloca em discussão o funcionamento do Sistema de Transporte de Passageiros na RMR.
O Brasil se surpreendeu com a explosão das manifestações de junho de 2013 pela melhoria do transporte público. Nunca a necessidade de melhoria do sistema foi tão evidente. As mobilizações começaram em São Paulo, pela revogação de um aumento de R$ 0,20 na tarifa. Mas já se sabia que a raiz do problema não estava no reajuste. Como não está até hoje.

engarrafamento10O congelamento das tarifas não satisfaz quando o serviço não é satisfatório. E não há sinais de melhoria. Nem mesmo as desonerações tributárias oferecidas em alguns estados e municípios serviram para mudar o quadro atual. Há uma longa distância entre fazer o sistema funcionar aos trancos e barrancos e manter um serviço regular, eficiente, seguro e confortável.

Enquanto espera por um ônibus comum em uma parada na Rua do Sol, Centro do Recife, o biólogo Diogo Aguiar, 27, que usa três conduções por dia, reclama do tempo que perde nos deslocamentos. “Eu gasto em média uma hora e 20 minutos no trajeto, mas com a integração pago apenas uma passagem de R$ 2,15. Eu não me importaria em pagar um pouco mais se o serviço fosse melhor”, diz ele.

Passageiros aguardam ônibus no Centro do Recife, sem informações do trajeto dos ônibus
Passageiros aguardam ônibus no Centro do Recife, sem informações do trajeto dos ônibus a espera é angustia diária – Foto Annaclarice Almeida

No modelo atual, as contas do sistema ficam nas costas dos usuários. O consenso entre os especialistas é que não é mais possível custear todo o sistema com a tarifa. O sinal de alerta acendeu e revela que a saúde do sistema está comprometida. “O quadro é grave. O que se arrecada não é suficiente. As empresas estatais estão tendo déficits crescentes com a canibalização dos serviços e os equipamentos que não se renovam. É a desorganização do sistema”, alertou o especialista Frederico Bussinger, do Instituto de Desenvolvimento Logístico, Transporte e Meio Ambiente (Idelt).

O anúncio de um déficit mensal de R$ 7 milhões pelo Sindicado das Empresas de Transporte Urbano (Urbana-PE), não foi surpresa para os especialistas. “Não é apenas o Recife que passa por essa crise. Esse modelo é insustentável, e há o agravante das tarifas congeladas e sem nenhuma outra fonte de receita”, disse o diretor-administrativo da NTU, Marcos Bicalho.

A lógica é que a conta também seja dividida com os beneficiários do transporte público, como os usuários de carros. “Quanto mais gente estiver no transporte público mais espaço sobra para o carro. E não há nenhum tributo para beneficiar o transporte público’, ressaltou o urbanista em mobilidade sustentável, Nazareno Stanislau Affonso, do Movimento pelo Direito ao Transporte (MDT).

A criação de um fundo para o transporte público e redirecionamento de verbas para projetos a curto prazo são urgentes. “Com 10% dos R$ 50 bilhões oferecidos pelo governo, seria possível construir 4 mil km de faixas exclusivas e isso traria um ganho significativo na redução do tempo das viagens”, afirmou Otávio Cunha, presidente-executivo da NTU.

Saiba mais

10 propostas para melhoria do sistema de transporte

Instalar e ampliar faixas exclusivas nos corredores de transporte

Equipar paradas e abrigos de ônibus com informações das linhas

Cobrar pedágio urbano nos centros para estacionamento de veículos

Proibir estacionamento em todas as vias de corredores de transporte

Criar tributos na compra de veículos e na gasolina para fundo do transporte público

Ampliar as redes de integração do sistema de transporte

Destinar IPTU de imóveis de grande porte para o transporte público

Discutir a gratuidade em órgãos como Correios e Polícia Militar

Aumentar a eficiência da fiscalização dos beneficiários com a gratuidade

Fonte: ANTP;NTU e MDT

A mobilidade e as eleições de 2014

ônibus Recife - Foto - Teresa Maia/ DP.D.A.Press

Engana-se quem acredita que os desafios em mobilidade urbana devem estar apenas na pauta municipal e não nas campanhas dos candidatos à Presidente e governos estaduais. A história recente tem mostrado que governo federal e estados tem papel importantíssimo, sendo responsáveis pela maior parte dos investimentos públicos em transporte, habitação e saneamento.

Mesmo nos projetos municipais, como por exemplo BRTs ou corredores de ônibus, a participação federal é decisiva. Sobretudo se os recursos vierem, como de fato vem (salvo raras exceções) de empréstimos da Caixa Econômica Federal e do BNDES. A participação do Governo Federal com recursos a fundo perdido (OGU) ainda é tímida se comparada, por exemplo,à política habitacional.

Cabe ao governo federal estabelecer políticas públicas integradoras em seus programas de governos. A desarticulação entre as políticas em distintas esferas (federal, estadual e municipal) é grave, precisa ser revista do ponto de vista institucional e compromete o desenvolvimento urbano sustentável de nossas cidades. Já a desarticulação entre políticas de um mesmo nível de governo é absolutamente inaceitável!

Vemos constantemente políticas que não dialogam entre si. Como os Planos de Saneamento, Diretor, Mobilidade e Resíduos Sólidos. Estes planos estão dialogando com os aportes financeiros do governo federal e estadual? Os planos de mobilidade, saneamento e diretor de cada município estão sendo levados em consideração na construção das milhares de unidades do programa Minha Casa Minha Vida?

Em âmbito estadual o desafio é enorme e caro. Cabe, segundo nossa constituição, aos estados os transportes por trilhos, seja ele metrô ou trem. Esse alto custo leva os governos estaduais a tomarem empréstimos do governo federal. Também é fundamental analisar o impacto urbano causado por grandes obras de infraestrutura nas cidades. Estão seguindo as diretrizes do plano diretor e de mobilidade? Estão refletindo sobre os impactos nos entornos das estações e da área de abrangência do projeto? Isso mostra, mais uma vez, a importância de termos agências de planejamento metropolitano.
Do ponto de vista da política econômica outra questão merece esclarecimento dos candidatos: manteremos o incentivo à compra do automóvel e, ao mesmo tempo, a CIDE zerada?

Estudos recentes da UFPR indicam que os resultados dessa política de incentivo à compra de automóveis para o crescimento da economia e geração de empregos foram pífios. Do outro lado os custos com congestionamentos, segundo recente pesquisa da Firjan chegam a R$ 29 bilhões apenas no Rio de Janeiro. Com esse valor seria possível construir o equivalente a 4 vezes a rede atual de metrô da cidade por ano. Isso sem contar os custos ambientas ou com saúde e vítimas de trânsito, que segundo dados do IPEA custam cerca de R$ 40 bilhões de reais por ano, ou um pouco mais que um terço do total investido em mobilidade urbana pelo atual governo federal.

Se ainda não está convencido do papel que a mobilidade merece nessa eleição presidencial lhe apresento mais um argumento: em abril de 2015 vence o prazo estabelecido pela Lei 12.587 para que as cidades com mais 20.000 habitantes concluam seus planos municipais de mobilidade urbana. Caso não tenham seus planos até essa data serão impedidos de acessar recursos do governo federal para mobilidade. O próximo presidente manterá essa data? Ou como no caso dos planos de saneamento o prazo será adiado?

Por fim deixo um desafio e uma proposta para o próximo presidente. Hoje, de acordo com dados da ANTP, cerca de 40% dos deslocamentos feitos nas cidades são por meio não motorizado (a pé ou bicicleta). Mas não há uma linha sequer exclusiva de financiamento para o transporte não motorizado em âmbito federal. Se dos R$ 143 bilhões tivéssemos destinado 1% para infraestrutura cicloviária poderíamos ter construído 7.150 km de ciclovias.

Pedro Torres é especialista e mestre em Planejamento Urbano pelo IPPUR/UFRJ. Atualmente é Gerente de Políticas públicas no ITDP Brasil.

Fonte: MDA (http://mdt-mdt.blogspot.com.br/)