José Carlos Trindade de Almeida – Motorista que atendia a Eduardo no Rio de Janeiro, desde 2008

“ Eu sentia nele felicidade, alegria, estava de bem com a vida, estava de bem com o que fazia”

 

Aline Moura e Rosália Rangel

Políticos normalmente andam em carros pretos e blindados. O que transportava Eduardo Campos, no Rio de Janeiro, nas viagens que ele fazia por ser presidente nacional do PSB e candidato à Presidência da República, não era diferente. Os diferenciados eram o motorista e o passageiro. O homem que dirigia o carro preto de Eduardo, um Honda Accord 2009, chama-se José Carlos Trindade de Almeida. Tem hoje 55 anos, é franzino, e carrega histórias que, para ele, têm quilômetros de sentimentos. Zé Carlos, como era chamado, trabalhou com “seu Eduardo” desde 2008, o segundo ano do primeiro mandato dele como governador de Pernambuco.

A relação de Zé Carlos com Eduardo era antiga e de confiança. Foi esse um dos motivos que levou a reportagem ao Rio de Janeiro, onde colheu as impressões do motorista sobre o ex-governador, que teve a carreira política interrompida de forma brusca. Os dois construíram laços. E da mesma forma que Eduardo gostava de contar “causos”, ele também. Foi nesse contexto que ele conversou com o Diario, enquanto pilotava o Honda preto. Zé Carlos chegou ontem ao Recife para presenciar as homenagens ao ex-governador, que morreu há um ano, mas a entrevista foi concedida há cerca de um mês, no Rio.

A última vez
A última vez em que eu recepcionei seu Eduardo chegando aqui no Rio de Janeiro. Ele veio com dona Marina, com a dona Renata e mais toda a comitiva, inclusive o nenenzinho. Na época ele era bem pequeno, com meses de idade, hoje em dia já está com um ano e pouco. Então eu cumprimentei ele, dei os parabéns pelo aniversário, pelo dia dos pais e falei: ‘Agora dá o meu (abraço) porque ontem (11 de agosto) foi dia dos pais e hoje é meu aniversário’. Ele até falou: ‘Puxa, você está trabalhando pra mim hoje?’. Aí eu respondi: ‘É pelo senhor, eu trabalho no dia do meu aniversário”. Então fomos para o hotel, naquela noite ele não saiu porque iríamos começar uma agenda bem extensa no dia seguinte, no dia 12. Então no dia 12, ele visitou, juntamente com a dona Marina, o cardeal do Rio de Janeiro, terminou a visita e voltou para o hotel, onde se concentrou para a entrevista da Globo, que aconteceu à noite.

A entrevista
Na hora de me despedir dele, quando ele ia subir para a entrevista da Globo, eu falei: ‘Olha, Deus abençoe todas as suas respostas’. E ele: ‘Puxa, muito obrigado, meu amigo, uma das melhores coisas que eu ouvi nessas últimas horas’. Aí subiu, a entrevista dele foi um sucesso, como todos sabem. Voltamos, ele parou na casa de uns amigos, onde a dona Marina já estava por lá, esperando ele, porque ela saiu na frente e ele voltou para o hotel para encontrar com a dona Renata para jantarem. Foi onde eu soube, por volta das 2h, que a dona Renata não iria mais de manhã com ele e que a dona Marina também não iria. Então, coloquei mais dois carros, um para cada uma, e levei ele às 8h20 da manhã. Chegamos no aeroporto por volta das dez para as nove, nove horas. O avião dele decolou era 9h20, eu esperei no aeroporto por mais 30 minutos e, depois desses 30 minutos, eu me desloquei para a minha casa. Quando cheguei na minha casa, já tinha acontecido o acidente.

Percol e Severo
O outro carro que levou Percol, o Severo e o Lira demorou um pouco para chegar no aeroporto. Então, eles demoraram uns quatro ou cinco minutos de atraso em relação ao meu carro, que estava com Eduardo, certo. Então eu voltei, coisa que normalmente eu não fazia, eu voltei até a sala de embarque onde eu tinha deixado o Eduardo e Pedro Valadares e falei: ‘Olha, eles estão atrasados um pouquinho porque alguma coisa houve lá, mas eles já estão vindo, eu me comuniquei com o menino e eles já estão vindo’.

Então quando eles (Percol e Severo) chegaram, desceram e trouxeram toda a bagagem, que era muita e me despedi mais uma vez de Eduardo. Daí, me despedi de todos, coisa que foi até interessante, porque normalmente a minha despedida deles não era ali, dentro da sala de embarque. Era geralmente ali no carro, ‘oi, até logo! Até logo’. Me despedi deles ali e já marcamos que, na quarta-feira, uns dias após, ele voltaria. ‘Olha, prepara tudo aí para o nosso regresso’, disse o Pedro Valadares. ‘Prepara tudo para o nosso regresso’. E eu disse a ele: ‘Vai estar tudo pronto’.

Coisas interessantes aconteceram naquele dia, naquele momento. Nós brincamos. Na hora em que eu já estava com Eduardo e o Pedro dentro do carro, voltando a esse pedaço, eu falei para o fotógrafo, Severo: ‘Severo, se abraça com ele aí, que é ele que vai te levar para o aeroporto’. Aí o Severo respondeu: ‘puxa, se me abraçar, eu gamo, cara. Eu não vou abraçar ele não que eu vou gamar. Um moreno desse, eu vou gamar’. Aí eu falei ‘cara, você é bobo’… e o Eduardo ‘vambora, vambora, já se conheceram, já começaram a brincar, já estão bem, já está todo mundo entrosado, vambora (sic)’.

O carão duplo
Então, foi quando eles (Percol e Severo) demoraram um pouquinho porque faltou o carrinho do neném e eu segui. E ele falou ‘Zé Carlos’… isso já é eu e o Eduardo conversando, aí eu dei para ele o jornal naquele manhã, ele deu uma passada rápida na primeira página, que é o que interessava muito a ele, e começamos a conversar. E ele ‘puxa vida, Zé Carlos… o que você fez com a Renata hoje?’ e eu ‘por quê? Onde que eu errei?’. Ele disse: ‘Oxe, você colocou ela muito cedo no aeroporto’ e eu disse ‘olha, só tem um jeito de dar certo, seu Eduardo, é com antecedência. Se eu não trabalhar com antecedência, ainda mais para o outro aeroporto, que é mais longe… pior era se tivesse voltando para cá, para o hotel, dizendo que perdeu o voo. Aí o senhor ia comer o meu fígado pior do que você está comendo agora’. E ele ‘estou comendo, não. Aqui é o seguinte: vocês fazem o inverso. Em vez de vocês costurarem as pontinhas para mim, eu que fico costurando as pontinhas para vocês. Mas tá bom, tá bom’.

A promessa
Naquela mesma manhã, naquele trecho até conversei com ele. ‘Zé, nós temos duas festas para ir em janeiro, né?’. E eu ‘quais duas?’. Então, ele disse ‘uma no dia primeiro e outra no dia 28, que é aniversário do Miguel. A do dia 28 está certo, a do dia primeiro talvez’. Aí eu disse: “Não, não, tenho que ir a Brasília no dia 1º de janeiro. Tenho que dirigir para uma pessoa lá em Brasília’. E ele ‘para quem?’, ‘para você, na posse’. Aí ele, brincando comigo, ‘não dá para você pedir algo mais fácil, não? Você sabe que não vai poder dirigir na minha posse’, aí eu ‘ah, não, você vai dar um jeito’. No momento em que nós descemos do carro, o Pedro Valadares afirmou para mim: ‘É, Zé Carlos, gostei de ver a tua resposta ali na situação da dona Renata’. ‘Ué, fui sincero com ele. E é por isso que ele está comigo até hoje, porque eu sou sincero com ele’

A angústia
Eu já estava em casa quando soube do acidente… A confirmação foi do Carlos Siqueira (presidente nacional do PSB). O Carlos Siqueira ligou para mim, o Rodrigo Molina também me ligou, mas o Carlos Siqueira que me deu a confirmação. Carlos Siqueira me pediu a confirmação do prefixo do avião, aí eu pedi para ele uns minutos para ligar de volta e que queria ter certeza da numeração para passar para ele, eu tinha essa numeração anotada no carro.

A vinda a Pernambuco
Eu tenho até fotos do velório e enterro dele… Eu fui sozinho… Olha, uma coisa que eu vi no estado dele, na cidade quando eu desci do avião, no aeroporto, eu vi pessoas chorando. Eu parei numa lanchonete para fazer um lanche antes de pegar o táxi para ir até o Palácio das Princesas, eu vi pessoas chorando no aeroporto. Eu pensei ‘puxa, a uma boa distância da onde está acontecendo, pessoas aqui chorando’…E eu procurava saber “puxa, por que tem tanta gente chorando aqui perto?’, Aí cheguei perto das pessoas e perguntei ‘por que vocês estão chorando? ’, e uma respondeu: ‘por que o nosso painho foi embora. Você vai encontrar a cidade toda chorando’. Eu achei aquilo muito… como alguém conseguiu uma comoção tão longe da onde estava acontecendo o velório e o enterro dele, né? Tão longe dali tinha tanta comoção. Olha, a dona Renata, eu a vi uma vez lá dentro do Palácio e a outra vez lá perto, na hora do sepultamento. Eu não consegui falar com ela. Eu acho que ela precisa de tudo, menos alguém choramingando no ombro dela. E toda vez que tentei chegar perto dela, a garganta travou-se. ‘Puxa, não vou chegar perto dela, não vou atrapalhar ela, ela não precisa disso’.

O cliente amigo
Olha, não perdi um cliente, perdi um amigo. Perdi um amigo e a tristeza é muito grande você ver que era uma pessoa que só tinha boas intenções para o povo dele e para todo o país, né? Um cara que aqui, tão longe da terra dele, por várias vezes que estava aqui comigo dentro do carro, que chovia muito, chovia muito, ele falou ‘puxa, como eu queria essa chuva no teto do meu carro, mas lá no Sertão do meu estado’. Como ele, tão longe, com tantas coisas aqui no Rio para fazer, ele lembrava da seca do estado dele? Lembrava do povo dele? Então, aquilo passava a te tocar de uma forma… puxa, aquele cara não era só político, esse cara não é só o cara que está me contratando, esse cara é gente boa, esse cara é ser humano. Ele se preocupa com o povo dele. Com tanta coisa aqui, tanta gente em cima dele, pressionando ele e ele se preocupando com a chuva do Nordeste, que não está acontecendo.

As marcas
O que marcou mais dele em mim foi o modo dele viver. O modo dele viver, a alegria, a felicidade, o estar de bem com a vida é algo assim… você não acha em político nenhum no Brasil, eu não vejo isso. Eu conheci juntamente com ele, várias vezes, vários outros políticos. O que eu conseguia ver, o que consigo sentir dos políticos, são altamente profissionais. Altamente profissionais, altamente sérios, altamente comprometidos com o interesse próprio. Ele tinha o seu próprio interesse, mas a intenção dele era boa. Eu não consigo sentir isso nos outros políticos. Eu não consigo sentir prazer no que faz nos outros políticos. Eu sentia nele felicidade, alegria, estava de bem com a vida, estava de bem com o que fazia. Estava feliz com o que fazia, estava feliz com a vida que levava. Eu não consigo ver isso nos outros políticos.

O desgosto
Ele não aceitava traição. Uma coisa, assim, que ele repetiu umas quatro ou cinco vezes foi que aconteceram traições na vida dele, né? Ele ‘puxa, seu Zé Carlos, eu aceito tudo do ser humano, aceito conviver com as diferenças do ser humano. O ser humano não é perfeito. Agora, traição eu não admito. E durante o tempo que eu convivi com ele… e o interessante que algumas traições aconteciam pelas costas dele, no momento em que ele não estava no estado, entre as pessoas mais próximas a ele. Então, uma das coisas que ele falava para mim era: ‘Zé Carlos, eu aceito tudo do ser humano, menos traição’… A única coisa que incomodava ele era traição. Traição era inadmissível no mundo dele. Na vida dele, no ser dele, ele não admitia traição.

A descontração
Havia brincadeiras. Poucas. Havia mais assim… ele brincava, mas, nos momentos em que ele estava comigo, era um momento que, às vezes, ele estava descontraído, estava alegre. Quando ele estava comprometido com o próximo compromisso, porque às vezes ele vinha aqui e era uma agenda de quatro cinco compromissos seguidos… Então, ele se concentrava para esse próximo compromisso, que ele não podia errar e no próximo compromisso. Ele já tinha que ler uma outra agenda, uma outra pessoa que ele ia falar. Então, às vezes, o que acontecia? Naquele momento, às vezes ele uma hora comigo dentro do carro, a coisa que eu tentava fazer era não incomodar ele. Então, como, no último dia de vida dele, aquele dia ele não tinha agenda. A agenda que ele tinha para cumprir em São Paulo, em Santos, era uma agenda mais light. Ele não tinha que decorar nada, ele não tinha que fazer nada muito complexo. Toda vez que o Eduardo sentava do meu lado, eu sabia que ele queria descontrair, queria bater papo,
conversar sobre futebol ou outros políticos, daqui do Rio de Janeiro… Queria perguntar como estava a opinião. Ele perguntava minha opinião, a opinião do povo. Eu era tipo assim: um termômetro para ele.

A família
Ah, outra coisa muito importante para o Eduardo era a família. A família era a primeira coisa para o seu Eduardo Campos. No dia em que a minha filha caçula (Jéssica Frazão de Carvalho Trindade) nasceu (16 de julho de 2012), eu estava trabalhando para o Eduardo. Então eu estava trazendo ele do centro da cidade de volta para o Sofitel Copacabana. Inclusive, ele estava hospedado nesse mesmo hotel, foi o último hotel em que ele ficou hospedado. Então, eu falei para o seu Eduardo: ‘seu Eduardo, olha, eu vou deixar o senhor no hotel, só que, na parte da tarde em diante, quem vai estar com o senhor vai ser outra pessoa, porque minha filha nasce hoje, minha mulher já está indo para a casa de saúde e eu estou indo encontrar com ela’. E ele: “O que é que você está fazendo aqui? Olha só, vá. Vá logo’. E ele fala uma das frases que ele gostava de usar, era ‘vá logo, faça logo, dê logo’. Depois completou: ‘Não quero ver você mais aqui. Me deixe no hotel e vá ver sua filha, vá ver sua esposa. Elas são importantes, eu não sou importante’.

A carta
Aqui, eu tenho uma carta que a minha filha de 10 anos escreveu quando aconteceu o acidente com seu Eduardo. Então a carta diz o seguinte: “Quando eu aprendi o que é amizade de verdade’. O amigo do meu pai morreu num acidente de aeronave, um avião. Quando meu pai soube, ele ficou muito triste e até eu, que não conhecia o Eduardo Campos, fiquei triste. Em um mês antes da morte, meu pai me perguntou se eu queria conhecer ele e eu disse ‘eu não sou tão fã assim’. Bem, me arrependi disso. Agora, não posso conhecer o Eduardo. Mas quando eu morrer também. Hoje foi aniversário do meu amigo. Foi legal”, aí ela se desviou um pouquinho do assunto. ‘Quando à morte do amigo do meu pai, eu sei que nunca perdi ninguém muito importante, porque , quando minha avó morreu, era nem era nascida, e meu avô, eu era bem pequena, era um bebê, não entendia nada. Amigo é como irmão”. Aí, ela desenhou aqui, ‘pai’, ‘Eduardo’, e um ‘beijo Eduardo, descanse em paz’. Eu achei muito legal de uma menina de dez anos, que não chegou nem a conhecer o Eduardo.