Bernardo Vieira de Melo guerreiro e republicano
Após reprimir índios e negros rebelados ele também se revoltou e foi à luta contra o domínio português
Como quase todos os “principais” pernambucanos no início do século dezoito, o capitão Bernardo Vieira de Melo odiava os portugueses. E tinha bons motivos para isso, como, por exemplo, o monopólio que obrigava os produtores locais a vender seu açúcar apenas aos comerciantes lusos, pelo preço estabelecido por eles; e a lhes comprar armas, alimentos, tecidos, ferramentas etc., pelo preço que eles quisessem cobrar. Ou a retirada, aos poucos, de antigos direitos dos filhos da terra, como a exclusividade na nomeação para os cargos públicos. Ou, ainda, a permissão para que o Recife, onde viviam os europeus, tivesse sua própria câmara municipal, em vez de permanecer submetido à Câmara de Olinda, controlada pelos nativos, que perderam, com isso, o pouco poder político que ainda lhes restava.
Então, em outubro de 1710, a revolta explodiu. O governador português Sebastião de Castro sofreu um atentado à bala e depois fugiu para a Bahia. O Recife foi ocupado pelos olindenses. E no dia 10 de novembro, Bernardo e outros líderes, como Leonardo Bezerra e Sebastião de Barros Rego, propuseram o rompimento com Portugal e o estabelecimento em Pernambuco uma república independente e plutocrática, ou seja, governada pelos ricos, ao modo de Veneza, na época.
Mas, para a maioria dos outros senhores, essa proposta pareceu radical demais, e Bernardo findou pagando caro pela sua ousadia…
NOBREZA INDIGNADA
Descendente de duas famílias aristocráticas de Portugal, Bernardo Vieira de Melo era senhor de vários engenhos e exerceu diversos cargos públicos nos seus 52 anos de vida. Fora governador do Rio Grande do Norte, capitão-mor de Igarassu, e em 1710 era um dos principais “senadores” (vereadores) da Câmara de Olinda.
Além disso, possuía um glorioso currículo militar. Já reprimira uma grande revolta indígena chefiada pelo cacique Canindé, no Rio Grande do Norte, e ao lado do paulista Domingos Jorge Velho derrotara o lendário Zumbi e destruíra o quilombo dos Palmares. Para muitos, um feito tão formidável quanto a expulsão dos holandeses, em 1654. Mas os seus inimigos, daquela vez, eram os portugueses.
Ora, na opinião de Bernardo, esta capitania se desenvolvera, no primeiro século da colonização, por gozar de bastante autonomia comercial e administrativa. O rei mandava pouco, por aqui. E por ter ficado muito rica ela atraíra a cobiça dos flamengos que a invadiram, em 1630. Os pernambucanos, porém, quase sem apoio externo, à custa do seu sangue, derrotaram aquele poderoso assaltante, e assim garantiram para Portugal suas possessões na América, ao contrário da África e da Ásia, onde as perdas para a Holanda foram imensas.
Nada mais justo, então, do seu ponto de vista, que após a saída dos holandeses os filhos dessa terra recebessem de volta algumas vantagens, como a isenção de certos impostos e autonomia nas nomeações para os cargos públicos. Mas não receberam. E, aos poucos, foram sendo excluídos não só da escolha dos governadores como até dos sargentos e meirinhos.
Revoltados, os pernambucanos “principais” passaram, então, a se chamar de “nobres”. Afirmando descender da antiga aristocracia lusa, procuravam se valorizar e se distinguir dos plebeus portugueses, principalmente dos ricos comerciantes, apelidados por eles de “mascates”.
Que, por vez, os chamavam de “mazombos” e “pés-rapados”.
FAZENDO REPÚBLICA
Então, em 1707, Portugal e Espanha entraram em guerra e a situação financeira dos nobres, que já não era boa, piorou. Muitos navios se perderam e a frota que vinha do Reino passou de anual a bienal. Já os custos de produção do açúcar dispararam. O preço de um escravo, por exemplo, subiu de 30 a 40 mil réis para 150, devido ao garimpo de ouro em Minas Gerais, que requeria muita mão de obra. E, em 1710, com a chegada do decreto que dava autonomia ao Recife, as “alterações” começaram.
A maioria dos pernambucanos — não só os ricos, mas também os pobres, que atribuíam o alto custo de vida à ganância dos mascates — amotinou-se contra o domínio português. Em outubro, o governador Sebastião de Castro e Caldas levou cinco tiros numa emboscada, e em novembro, o Recife foi cercado por tropas vindas do interior. Sebastião, então, fugiu para a Bahia, e os vitoriosos se viram numa encruzilhada.
Eles deveriam “fazer república”, como queria Bernardo, e arriscar-se numa guerra?… Ou não seria melhor por a culpa de tudo no fujão Sebastião de Castro e tentar um acordo Sua Majestade, pedindo de volta seus antigos privilégios, em troca de paz?…
Sem dúvida, uma escolha bastante difícil.
Enganados e reprimidos com extrema violência
A discussão chegou ao ponto de os nobres quase pegarem em armas uns contra os outros. No final, a proposta republicana recebeu apenas oito votos e o governo foi entregue ao bispo D. Manoel Álvares, enquanto as reivindicações pernambucanas eram encaminhadas a Lisboa.
A resposta, contudo, demorou a chegar, e a briga recomeçou. O estopim foi um desentendimento dos homens da tropa de Bernardo, estacionados do Recife, com os portugueses, em junho de 1711, por causa de uma mulata. Então, os mascates assaltaram a casa do capitão, que foi atirado na cadeia. E, em seguida, tomaram posse da vila, pedindo a volta do governador Sebastião de Castro.
Em resposta, os nobres cercaram o Recife mais uma vez, e houve muita luta no interior, também, até a chegada, em outubro, de um novo governador, Felix Machado, que trouxe um perdão geral para todos os implicados naquelas “alterações”.
Por algum tempo, Machado pareceu agir com bom senso e justiça, buscando acalmar os ânimos. Mas era apenas astúcia dele. Depois de tomar pé da situação e fazer acordos secretos com os “principais” a favor de Portugal, ele mostrou, de fato, a que viera.
Em fevereiro de 1712, o novo governador decretou a prisão e o sequestro dos bens de dezenas de nobres, a pretexto de que havia uma nova conspiração em andamento. E todos eles sofreram grandes humilhações, sendo exibidos ao povo em grilhões, como escravos fugidos — para homens tão orgulhosos, um castigo pior que a morte.
Em outubro de 1713, onze deles foram embarcados para Lisboa. Inclusive, Bernardo Vieira, que morreu no ano seguinte, na prisão, sufocado pelos vapores de um braseiro colocado em sua cela para amenizar o frio europeu. Seu filho André também morreu por lá, enquanto a repressão, por aqui, seguia ferocíssima, com a detenção de centenas de pernambucanos — tão violenta que, por um século inteiro, não haveria mais nenhuma “alteração” nesta capitania.
As homenagens ao guerreiro republicano só vieram em tempos recentes. Seu nome foi dado à principal avenida de Jaboatão dos Guararapes e a outra, em Natal. A Câmara Municipal de Olinda passou a se chamar Casa de Bernardo Vieira de Melo. E a Revolução de 1710 ganhou o apelido de “Guerra dos Mascates”, devido a um folhetim do escritor José de Alencar, sobre o tema, que fez muito sucesso no século dezenove.
Coincidência?
O primeiro ato de propaganda política da Revolução de 1710, nascida em Olinda, foi a derrubada do pelourinho do Recife. O recém-erguido monumento de pedra, símbolo da autonomia das vilas portuguesas, foi posto abaixo por um grupo de homens fantasiados de índios, para assim ressaltar que eram americanos e não europeus. Já a luta pela independência dos Estados Unidos começou em Boston, em 1776, com o “tea party”, o ataque a um navio inglês também por um grupo de falsos indígenas. Por coincidência, provavelmente.
Terra violenta
O atentado ao governador Sebastião de Castro não foi algo extraordinário. Em Pernambuco, naquele tempo, mandar espancar ou matar seus desafetos, sem ser castigado por isso, era o modo natural de os poderosos resolverem suas querelas, inclusive, dentro das próprias famílias. Fernão Barbalho, senhor de engenho na Várzea, por exemplo, por uma questão de honra matou a mulher, as filhas e um sobrinho, com ajuda dos filhos. Antônio Curado Vidal andou assassinar onze pessoas, incluindo a madrasta, dois parentes dela e o próprio genro. E Bernardo Vieira de Melo mandou estrangular sua nora, logo após a jovem ter dado a luz, devido a uma suposta infidelidade dela ao seu filho André, com o rico proprietário João Paes Barreto, que foi morto numa emboscada.