Francisco Julião, o guia das temidas Ligas Camponesas
Ele causou medo e ganhou admiração como um dos grandes agitadores de massas do Terceiro Mundo, durante a “guerra fria”
Estava o deputado Francisco Julião certo dia na varanda de sua casa, no Recife, lendo o Diario de Pernambuco, quando bateram palmas no portão. Tratava-se de um grupo de camponeses que, com José dos Prazeres à frente, queriam dar uma palavrinha com ele. Isso foi em 1955.
José e seus companheiros viviam no Engenho Galiléia, em Vitória de Santo Antão, como “foreiros”, ou seja, pagando um “foro” mensal ao proprietário da terra da qual tiravam, mal e mal, o seu sustento. Sua pobreza era tanta que, quando morria um, para levar o defunto ao cemitério era preciso tomar um caixão emprestado à Prefeitura e devolvê-lo após o enterro.
Para se ajudarem mutuamente os “galileus” criaram, então, a Sociedade Agrícola e Pecuária dos Plantadores de Pernambuco (SAPPP), mas o dono do engenho, Oscar Beltrão, mandou fechá-la, pois aquilo lhe cheirava a comunismo. Eles, porém, não acataram a ordem e recorreram até ao governador Cordeiro de Farias e à Assembleia Legislativa, sem encontrar apoio. Aí foram procurar o deputado, que já se manifestara a favor dos camponeses, para representá-los como seu advogado.
Julião aceitou na hora e deu início, ali, a uma trajetória que em poucos anos o levaria às primeiras páginas dos grandes jornais do mundo, apontado como um novo Che Guevara ou um Mao Tse Tung pernambucano…
GUERRA FRIA
Francisco Julião Arruda de Paula nasceu em 1915 em Bom Jardim, no agreste pernambucano, filho de Adauto Barbosa de Paula e Maria Lídia Arruda de Paula. Formou-se advogado em 1939 e montou escritório no Recife. Com o fim do Estado Novo e a redemocratização do País, em 1945, filiou-se ao Partido Socialista Brasileiro (PSB) e tornou-se o primeiro deputado eleito por essa legenda no Estado, em 1954.
Vivia-se, então, a chamada “guerra fria”, quando duas superpotências — os Estados Unidos, capitalista, e a União Soviética, socialista — disputavam a hegemonia mundial, e a miséria nordestina preocupava tanto as elites brasileiras quanto as norte-americanas. Ambas temiam que as massas daqui saíssem da letargia e arrastassem o Brasil para o comunismo, levando com ele a América Latina, num “efeito dominó”. E — paranóias à parte — havia motivos para isso.
Naquele 1955, por exemplo, realizou-se no Recife o Congresso de Salvação do Nordeste, reunindo políticos e intelectuais e tendo Francisco Julião como presidente de honra, que denunciou o terrível quadro econômico e social da região. Houve ainda o 1° Congresso de Camponeses de Pernambuco, com três mil participantes, promovido pela SAPPP. E novas associações campesinas começaram a se formar em Pernambuco.
Mergulhando de cabeça nessa luta Julião foi reeleito deputado estadual em 1958, com grande votação. E em 1960 conseguiu a posse do Engenho Galiléia para os seus foreiros, aprovando uma lei que permitia a desapropriação de terras, com indenização aos antigos donos.
Ele não recusava a pecha de agitador. Afinal, “até remédio você precisa agitar antes de usar”, dizia. Comunista, porém, nunca foi, e tinha sérias divergências estratégicas com o PCB.
O Partido Comunista, por exemplo, privilegiava a luta dos trabalhadores rurais assalariados por meio dos seus sindicatos, e para Julião o importante era uma reforma agrária radical que transformasse camponeses em pequenos proprietários. Mas, ironicamente, seu movimento ganhou as páginas dos jornais de todo o País como “Ligas Camponesas” — nome das organizações criadas no campo pelos comunistas, na década anterior.
Em 1959, por exemplo, o Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, publicou uma série de reportagens de Antônio Callado, sobre as Ligas e o seu advogado, que causou um grande impacto. E, além de ficar famoso no Brasil, Julião logo virou notícia na imprensa internacional.
VITRINE MUNDIAL
Em 1960, o deputado integrou-se à comitiva do presidente recém-eleito Jânio Quadros numa polêmica visita a Cuba, e passou a se relacionar politicamente com Fidel Castro e outros líderes da esquerda mundial. E naquele ano, ainda, o The New York Times começou a alertar para o perigo representado pelas Ligas Camponesas, sob a liderança de Julião. Manchete de primeira página: “Pobreza do Nordeste do Brasil gera ameaça de revolta”.
A CIA também advertiu o presidente John Kennedy, que em 1961 despachou para cá uma missão chefiada pelo seu irmão, o senador Edward Kennedy. E os norte-americanos investiram aqui mais de cem milhões de dólares em projetos sociais, conjuntamente com a Sudene, através do programa “Aliança para o Progresso”. Por outro lado, expoentes da esquerda mundial, como o filósofo francês Jean Paul Sartre e sua mulher, Simone de Beuvoir, também visitaram a região.
Mas as Ligas seguiram avançando. Em 1961, já estavam em dez estados. Em 1962, lançaram um jornal, cogitaram fundar um partido político, e Julião foi eleito deputado federal. Porém, quando João Goulart — que fora ministro do Trabalho de Getúlio Vargas — assumiu a presidência do País, após a bizarra renúncia de Jânio Quadros, os sindicatos de trabalhadores rurais começaram a ganhar espaço, em detrimento das Ligas.
Preso, cassado e exilado por quinze anos
Em 1962, ainda, Julião perdeu um grande amigo, o respeitado líder camponês João Pedro Teixeira, covardemente assassinado na Paraíba, a mando de proprietários de terras — uma tragédia narrada no clássico documentário Cabra Marcado para Morrer, de Eduardo Coutinho. E com ele perdeu, também, parte da sua influência dentro das próprias Ligas.
O ano de 1963 também não foi bom. No plebiscito nacional feito para decidir se o Brasil, que se tornara parlamentarista, voltaria a ser presidencialista, Julião pregou abstenção e isolou-se ainda mais dentro das esquerdas, que votaram a favor do presidencialismo.
A aprovação do Estatuto do Trabalhador Rural, concedendo a esta categoria os mesmos direitos dos trabalhadores urbanos, também esvaziou as Ligas, nacionalmente. Ainda mais em Pernambuco, quando a diária paga aos camponeses da zona canavieira aumentou 150%, com Miguel Arraes no governo.
Mas aí veio o golpe civil-militar de 1964, e o rolo compressor passou por cima de toda a esquerda, independentemente das suas nuances políticas. No Nordeste, tão decantado como potencialmente revolucionário, a repressão foi ainda mais brutal. Dirigentes tanto da Ligas quanto de sindicatos, políticos e cidadãos que de algum modo apoiavam as lutas dos trabalhadores foram demitidos, perseguidos, presos e torturados. Muitos desapareceram.
O deputado Francisco Julião foi detido e teve os direitos políticos cassados, apesar dos seus protestos de jamais ter apoiado a luta armada e de se opor às ocupações de terras realizadas em Pernambuco. E, libertado no ano seguinte, exilou-se no México — país que fizera uma revolução campesina no início do século — onde ficou até a anistia, em 1979.
De volta à sua terra, Julião filiou-se ao PDT de Brizola e candidatou-se a deputado federal em 1986, mas não se elegeu.
Viveu então, entre o seu país e o México, onde morreu, em 1999, deixando seu nome inscrito na História como o maior líder das lutas pela Reforma Agrária no Brasil.
O plebiscito
Sete meses após assumir a presidência, em janeiro de 1961, Jânio Quadros, surpreendentemente, renunciou, e os militares recusaram-se a dar posse ao vice João Goulart, tido como esquerdista. Mas Leonel Brizola, governador do Rio Grande do Sul e cunhado de Jango, formou a Cadeia da Legalidade, impedindo o golpe, e a saída negociada para o impasse foi a mudança do regime presidencialista, vigente no País, para o parlamentarista, no qual o presidente, como a rainha da Inglaterra, “reina, mas não governa”. Goulart, porém, deu a volta por cima convocando um plebiscito nacional que lhe devolveu os poderes do cargo, em 1963, com apoio de praticamente toda a esquerda — excetuando Julião, que se absteve.
Marcha camponesa
O sociólogo Fernando Antônio Azevedo conta que era garoto quando assistiu uma marcha pela Reforma Agrária, em João Pessoa. E ela o impressionou não só pelo grande número de camponeses, mas porque eles atravessaram a cidade lenta e silenciosamente, com foices nas mãos e chapéus de palha na cabeça, da estação ferroviária até o local do comício, onde João Goulart discursou. A cidade parou e a classe média fechou-se em casa, tremendo de medo. E Fernando jamais esqueceu a figura de Julião, na primeira linha, magro e de cabelos revoltos, como um poeta romântico. Por isso, anos depois, a sua dissertação de mestrado foi As Ligas Camponesas, que se tornou uma obra clássica sobre o tema.